terça-feira, 31 de dezembro de 2013

NOS DETALHES MORA A LUZ


No sábado, depois de um almoço com bons amigos, voltei para casa passando pela Lagoa, ainda de dia, e pensei no detalhe da árvore do Bradesco, que, parece, ninguém quer ver: – sua estrutura é bruta e feia.  Planejei escrever sobre detalhes “tão pequenos de nós dois” que servem ao bem e ao mal também – “o diabo mora nos detalhes”. 

Abro o jornal de domingo e em duas matérias diferentes aparece título de “detalhes” – Elio Gaspari (“A privataria petista mora nos detalhes”) e Veríssimo (“Detalhes, detalhes”). Ué, estamos numa fase de pensar em detalhes. Concluí o óbvio: a vida é uma colcha de detalhes!

Pois, o jornal de domingo foi pródigo para se pensar em detalhes. Até pensei que nos detalhes mora a verdade. Regras gerais são ditados conclusos sem fatos nas matérias jornalísticas; são a “opinião pública” sem assinatura. São os preceitos e os preconceitos.
O que importa aqui, enfim, é que não dá para passar batido pelos detalhes reveladores, de que fala o Veríssimo.

No dia 31, hoje, último dia do ano, penso nas revelações daquele jornal de domingo ainda na minha mesa. Putz, e a entrevista do Snowden, hein?!

Penso em pianista negro, vem o Bené Nunes que não era, muito menos o Milito. Nem o Jean Paques et sa musique douce de nossas reuniões dançantes, mas o Nat King Cole era. Entre os jazistas americanos o Veríssimo diz que tem muitos . Paro aqui, não sou mesmo focado em música.  Mas a questão do negro na história americana e brasileira me mobiliza mais. Fala-se muito na política do branqueamento do século XIX, mas poucos sabem que na raíz da menor miscigenação nos Estados Unidos do que no Brasil, como mostraram os censos dos séculos XVIII e XIX, estava a composição da importação dos escravos. Os americanos do norte queriam famílias recém ou para serem constituídas, os brasileiros queriam só meninos e uma ou outra menina para os trabalhos caseiros. Pode ser que isso não explique tudo, mas explica muitas diferenças, para alem da condição econômica dos escravos liberados mais tarde. Um detalhe a mais.

O deputado Raul Henry, ao falar do apartheid educacional brasileiro, revela o mais impressionante e verossímel detalhe: os pais dos alunos matriculados nas escolas públicas são satisfeitos com a escola dos seus filhos, ainda que objetivamente, por resultados escolares objetivos, o ensino seja na média muito ruim (dados do Todos pela Educação).  Eu fico cá pensando: talvez isso ocorra no SUS Maravilha (apud Ligia Bahia) também. E o deputado conclui com incrível clarividência: “Quando não há pressão social pela solução de um problema de tamanha gravidade, é preciso uma ação institucional.”
Ora se isso não afeta nem a eleição local, como vai afetar a nacional? O senador Cristovão Buarque há mais tempo fala da federalização do ensino fundamental. E, eu já escrevi o mesmo para a saúde. Esse nosso modelo de municipalização está furado.

E mais gente acha o mesmo do que nos foi legado pela carta de 88: o contrabando originário do final da ditadura, quando um ministro simpático dizia que as pessoas moram no município – uma bobagem repetida sem parar pelos apoiadores da Nova República sarneísta – contaminou a nova constituição confundindo cidadania e municipalização. Aliás o Ministro Luís Barroso acaba de dizer claramente que devíamos ter um distrito eleitoral para a eleição de deputados (o distritão, como a mídia quer queimar), o que sempre propus para a saúde.

Mais abaixo naquela página 19 do jornal a Dra. Monica Schaum fala do milagre da prevenção do câncer.  Lembra ela que o Sudeste tem 2,7 médicos por mil habitantes, quase três vezes mais do que o Norte. Se formos olhar os recursos per capita para a saúde será muito parecido. Por isso falo que mais recursos nesse modelo assistencial vão para o mesmo ralo. Não adianta, mesmo com dados super duvidosos dos gastos brasileiros em saúde, dizer que os Estados Unidos gastam dez vezes mais per capita. Quem disse que a saúde deles é boa por isso? Ao contrário, é apenas mais cara, Dra. Monica.

Antes de tudo para a saúde melhorar no Brasil é necessário que se planeje a saúde com base na equidade. O foco deve ser corrigir as desigualdades no acesso aos serviços de saúde e promover a igualdade na prevenção. Isso só é possível com um serviço público de saúde pujante e organizado, sem dupla militância, sem estímulos indevidos a planos de saúde. O detalhe é que o SUS deve esquecer que é um sistema único de saúde para se tornar um serviço público, único, federado de saúde, gratuito no momento de utilização. Nessa estrutura institucional, a carreira dos servidores, seu treinamento contínuo, recriarão pela prática o ensino de qualidade para os profissionais de saúde.

Essa escrita, meio crônica de hoje, precisa encerrar com o que de melhor se leu no jornal “O Globo” do último domingo do ano: a entrevista de Edward Snowden comentada por Dorrit Harazin. Ela diz que sem dúvida as falas do Papa Francisco e de Edward Snowden foram o que melhor se ouviu no ano. Para ela, o Papa ao reorientar a “Igreja para a igualdade e justiça social... poderá ser o artífice de grandes mudanças sociais no futuro.” No entanto, “Edward Snowden, ao decidir revelar ao mundo a teia de programas invasivos com que vivemos, já concluiu seu trabalho. Quem quiser proteger as migalhas de privacidade que ainda dispomos, mexa-se.”

Para mim, foram muitos trechos de ambos que valem a pena ser lidos e os destaques são questão de escolha para mostrar outros ângulos da mesma coisa. As razões das palavras do Papa e de Snowden são concordantes: “Quem sou eu, por caridade, para interferir no diálogo de um gay com Deus” e na homilia da missa do galo fala que trazemos as trevas no nosso interior, mas sabemos o caminho a trilhar. E adiante :“O Senhor perdoa sempre!” – diz o Papa.  Snowden diz que fez o caminho possível:  “Se eu desertei, desertei do governo para o povo.” E a frase de maior alcance em termos éticos – o livre arbítrio - que os aproxima: “A privacidade é o que permite determinar quem somos e o que queremos ser.”

Meu detalhe, nessa mensagem de início de ano vai para o legado de Mandela, vai para a necessidade da atitude: precisamos carregar para o novo ano o ânimo de caminhar em busca de um novo mundo.




Eduardo em 31/12/13

sábado, 28 de dezembro de 2013

ÁRVORE DE NATAL DO RIO

Árvore da Lagoa nesse Natal tem galhos.
É NA LAGOA!

Nesse ano fomos surpreendidos por um fato banal, mas que não passou desapercebido: a quase ausência total de decoração natalina no Rio de Janeiro. É provável que a quantidade de obras nas vias públicas como preparação para a Copa tenham tirado o espaço ou a motivação para tal.

Assim, fomos compelidos a adorar a Árvore da Lagoa, ou do Bradesco e uns bonecos de presépio aqui e acolá.  Para minha alegria, dessa vez, o interesse não foi tão alto como nos primeiros anos de seu monta desmonta. O trânsito para quem mora aqui do lado do Jardim Botânico nesse período era terrível. Agora continuou sendo o que já é normal a maior parte dos dias dos dias úteis.

De dia os galhinhos do "pinheirinho" são demais!
O que sempre me invocou paralelamente é de como é feio esse tosco cone metálico que passa a maior parte do dia a corromper nossa bela paisagem da Lagoa. No corrente ano, o jogo de cores e motivos continua bonito à noite, mas já houve anos em que o espetáculo de cores era melhor.

Têm coisas muito simples que nunca entendo na “festividade promocional”. Por que o Bradesco coloca essa árvore lá? Em parte, creio, porque foi uma boa idéia e ponto. Não custa nada: tudo se desconta dos impostos e o custo da polícia para disciplinar o trânsito, e de tudo o mais, são por conta dos outros. Mas, já que vai colocar a coisa lá, não podia ser mais inteligente, “ambientalmente sustentável”? Será que eles concorrem com outros prá usar a Lagoa como plataforma promocional? Será que, de fato, a idéia nasceu da prefeitura e foram buscar um patrocinador? Não sei.

Sem mudar muito, eu teria uma idéia simples: fazer ela ficar bonita de dia também! Seria fácil com placas refletoras coloridas – em forma de bolas ou não, que se movessem pela brisa; o sol ou a chuva fariam o resto.  Para o espetáculo à noite seria só jogar luzes sobre ela. Ta bom, dá para ter idéias melhores, inclusive acabar com ela, mas convenhamos há mais de dez anos, acho, que esse negócio acontece.

Mas porque estou escrevendo sobre isso? – tem coisa muito pior acontecendo ao meu redor. A resposta também é simples, alem de gostar de beleza, recebi um email com as Árvores de Natal mais belas do mundo, não estamos entre as sete primeiras. Mas a "nossa" está lá, numa foto singular que é quando jogava fogos pelas ramas, entre as 20 mais. O problema é que é um minuto só daquela beleza. E o resto do dia? Eu tenho de ver todo o tempo! Tô ficando rabugento? Acho que não.

À noite, mesmo sem foco, agrada!
Entenda que tudo é um gancho para desejar um excelente ano de 2014 a todos amigos e amigas, com muita criatividade, beleza e alegria...

E muitas manifestações de rua boas para todos nós.
            

BOAS FESTAS E FELIZ ANO NOVO!


São os votos do Eduardo.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

PERDEDORES DA COPA

Aldir Blanc*

Não há postos de saúde, escolas precárias vão até o ensino médio

Uma filha, geógrafa, foi trabalhar no litoral nordestino. Não nomearei os locais para não prejudicar o pequeno turismo que ajuda os moradores. O cenário é, à primeira vista, deslumbrante. Imensas extensões de areia puríssima, aquele mar vasto, que fazia os antigos navegadores temerem o abismo caso chegassem à linha do horizonte. Vê-se nas fotos uma traineira para pesca de camarão, quilômetros depois uma ou outra jangada e pensamos no paraíso.

O problema é que não há postos de saúde, escolas precárias vão até o ensino médio e olhe lá. Não existem centros culturais, de lazer ou bibliotecas. Cerca de 30% a 40% dos moradores se converteram em ferozes evangélicos, que ameaçam seus concidadãos com o diabo e o fogo do inferno por qualquer motivo besta. A alimentação é paradoxal: fartura de peixes, camarões, lagostas, e pirão de farinha. Macarrão, feijão e arroz são considerados comida de rei. Vivem principalmente do artesanato de garrafas com areia colorida, nas quais reproduzem a belíssima paisagem. A triste surpresa é que, entre os não fanatizados por uma crença estúpida, prolifera um número absurdo de viciados em crack. Adolescentes, artesãos, pescadores, mulheres, velhos, todo mundo pegando no cachimbinho. Um deles disse na entrevista:

— Experimenta, menina! A gente fuma depois de uns copos de litrão (cachaça) e a tristeza vai embora...

Quando um fica mal devido ao vício, os outros procuram ajudar, talvez de forma mais humana do que os ditos evangélicos. Pode-se, logo nos primeiros dias, ver os sinais da tal tristeza: uma alegre menina, que adorava andar de bicicleta, ficou cega ao ser atropelada por um ônibus. Levou tanto azar que teve os olhos rasgados pelos cacos de espelho da bicicleta. O ônibus passava em frente à porta da casa dela, transportando operários para um “empreendimento” distante. Da noite para o dia, a rua deserta foi invadida pelo tráfego de veículos pesados. Não colocaram quebra-molas, sinalização, nada. A família tentou uma indenização que não se concretizou. A garota vai, com uma coragem incrível, ter aulas de braille uma vez por semana. Cinco horas para ir, mais cinco para voltar. Ela gosta de ler. Outra criança, menino de 1 ano: febre e convulsão. Levado ao hospital público mais próximo, quase cem quilômetros de distância, não foi atendido corretamente. Um antitérmico. Tchau! Piorou. O pai, jovem de 21 anos, voltou e fez ameaças com a peixeira. Era tarde. O menino teve lesões irreversíveis e sofre de paralisia cerebral. Tem mais: um artesão foi trocar a bolsa de colostomia. O quadro se complicou no hospital — cloaca. Apesar de já anestesiado, alguém veio avisar que não havia como prosseguir. Falta de condições. Aí, apareceu um médico (?) e disse que poderia fazer o serviço em sua clínica particular. 600 reais.

Pertinho do tal hospital funciona ótima clínica de plano de saúde poderoso, um desses que mantêm seu time na Primeirona — mas a grande maioria daqueles miseráveis no paraíso não pode pagar.


Feliz Natal

Publicado em 22/12/2013 OGlobo: http://oglobo.globo.com/opiniao/perdedores-da-copa-11131171

sábado, 21 de dezembro de 2013

ABRIDORES DE LATAS

Franklin Cunha*


Em 1812 os soldados britânicos levavam nas mochilas latas de conserva, mas tinham de abri-las com a baioneta; caso não conseguissem, um tiro de fuzil resolvia o problema, mas perdia-se parte ou todo o conteúdo da lata.

Em 1824, o explorador inglês William Parry, também as levou na sua viagem ao Ártico. Nelas lia-se a seguinte recomendação: “Corte-se com formão e martelo, ao redor da parte superior”.  
A lata de conserva foi inventada na Inglaterra em 1810 pelo comerciante Peter Durant, no entanto o abridor de latas só foi inventado, quarenta anos após pelo norte-americano Ezra Warner. Era um instrumento rombudo e pesado. Havia o risco de perder-se o conteúdo  como com o tiro de fuzil.

A história parece absurda, mas é verdadeira. Como foi possível inventar a lata de conserva tanto tempo antes de se inventar o instrumento que as abrisse?

No entanto, ultimamente, as mais confiáveis publicações médicas do mundo, andam preocupadas com um fenômeno semelhante que está se dando na produção e divulgação científicas: existem no mercado muitas latas cheias de informações, só que não se pode abri-las com baioneta ou com  formão. Deve-se usar um abridor adequado para cada lata e muitas delas contém produtos inapropriados ao consumo.

Editam-se, atualmente, publicações médicas em quantidades oceânicas. Qual o abridor, qual o critério para se avaliar o valor e a integridade científica dos conteúdos, já que a seleção torna-se imperiosa diante da exigüidade de tempo dos profissionais?

Além disso, vivencia-se hoje, - e não apenas na área médica - uma verdadeira guerra de informações que necessitam ser criticamente interpretadas, pois nelas se baseiam as decisões clínicas e, em última  análise, a saúde e a vida dos pacientes.

Acontece que os textos médicos, freqüentes vezes, estão de tal forma contaminados por implicações econômico-financeiras, que já se realizam simpósios, os quais  ensinam como valorizar os referidos textos ou como separar o joio dos interesses econômicos, do saudável  trigo da genuína informação científica. Um simpósio, foi recentemente realizado em Oxford, Inglaterra. Nele, foram criticamente examinados, os vários métodos de se realizar e julgar a validade de trabalhos científicos ou assim chamados.

Os resultados e as conclusões do referido simpósio, forneceram justificadas preocupações. Não houve acordo sobre o melhor método de se elaborar um trabalho científico e de como dar crédito à  sua validade. Ao se medir a qualidade dos trabalhos (desenho, condução, consistência de resultados e relevância clínica), não ficou claro como isto deve ser feito. Combinações baseadas em evidências, revisões sistemáticas e aleatórias, seria o sistema quase perfeito, mas não há meios de executá-lo em todos os textos.

O simpósio de Oxford, não chegou a um consenso a respeito de qual o melhor método de se avaliar a literatura médica, no entanto num ponto houve acordo: em certos assuntos, as conclusões resultantes parecem depender apenas das ligações econômico-financeira dos avaliadores com empresas de medicamentos e de equipamentos.
 
Foi também recomendada, a realização de revisões que levem em conta a perspectiva dos pacientes, incluindo o risco potencial de certos tratamentos, a qualidade de vida resultante e os custos econômicos e sociais de certas terapêuticas que vêm e vão, como as roupas da estação.


*(Artigo do livro do médico Franklin Cunha: “A LEI PRIMORDIAL “, Prêmio melhor Livro de Ensaios de 2005, conferido pela Associação Gaúcha de Escritores.)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

HABEMUS PAPAM

Por Mauro Santayana

Acusado por um conservador norte-americano de ser marxista, Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, negou sê-lo, mas disse que não se sentia ofendido, por ter conhecido ao longo de sua vida muitos marxistas que eram boas pessoas.

A declaração do papa, evitando atacar ou demonizar os marxistas, e atribuindo-lhes a condição de comuns mortais, com direito a ter sua visão de mundo e a defendê-la, é extremamente importante, no momento que estamos vivendo agora.
   
A ascensão irracional do anticomunismo mais obtuso e retrógrado, em todo o mundo — no Brasil, particularmente, está ficando chique ser de extrema direita — baseia-se em manipulação canalha, com que se tenta, por todos os meios, inverter e distorcer a história, a ponto de se estar criando uma absurda realidade paralela.

Estabelecem-se, financiados com dinheiro da direita fundamentalista, “museus do comunismo”; surgem por todo mundo, como nos piores tempos da Guerra Fria, redes de organizações anticomunistas, com a desculpa de se defender a democracia; atribuem-se, alucinadamente, de forma absolutamente fantasiosa, 100 milhões de mortos ao comunismo.

Busca-se associar, até do ponto de vista iconográfico, o marxismo ao nacional-socialismo, quando, se não fossem a Batalha de Stalingrado, em que os alemães e seus aliados perderam 850 mil homens, e a Batalha de Berlim, vencidas pelas tropas do Exército Vermelho — que cercaram e ocuparam a capital alemã e obrigaram Hitler a se matar, como um rato, em seu covil — a Alemanha nazista teria tido tempo de desenvolver sua própria bomba atômica e não teria sido derrotada.

Quando houve o Golpe Militar, o povo preparava-se para reeleger novamente JK presidente da República em 1965

Quem compara o socialismo ao nazismo, por uma questão de semântica, se esquece de que, sem a heroica resistência, o complexo industrial-militar, e o sacrifício dos povos da União Soviética — que perdeu na Segunda Guerra Mundial 30 milhões de habitantes — boa parte dos anticomunistas de hoje, incluídos católicos não arianos e sionistas, teriam virado sabão nas câmaras de gás e nos fornos crematórios de Auschwitz, Birkenau e outros campos de extermínio.

Espalha-se, na internet — e um monte de beócios, uns por ingenuidade, outros por falta de caráter mesmo, ajudam a divulgar isso — que o Golpe Militar de 1964 — apoiado e financiado por uma nação estrangeira, os Estados Unidos — foi uma contrarrevolução preventiva. O país era governado por um rico proprietário rural, João Goulart, que nunca foi comunista. Vivia-se em plena democracia, com imprensa livre e todas as garantias do Estado de Direito, e o povo preparava-se para reeleger Juscelino Kubitscheck presidente da República em 1965.

1964 foi uma aliança de oportunistas. Civis que há anos almejavam chegar à Presidência da República e não tinham votos para isso, segmentos conservadores que estavam alijados dos negócios do governo e oficiais — não todos, graças a Deus — golpistas que odiavam a democracia e não admitiam viver em um país livre.

Em um mundo em que há nações, como o Brasil, em que padres fascistas pregam abertamente, na internet e fora dela, o culto ao ódio, e a mentira da excomunhão automática de comunistas, as declarações do papa Francisco, lembrando que os marxistas são pessoas normais, como quaisquer outras — e não são os monstros apresentados pela extrema-direita fundamentalista e revisionista sob a farsa do “marxismo cultural” — representam um apelo à razão e um alento.

Depois de anos dominada pelo conservadorismo, podemos dizer, pelo menos até agora, que Habemus Papam, com a clareza da fumaça branca saindo, na Praça de São Pedro, em dia de conclave, das veneráveis chaminés do Vaticano.  

Um Papa maiúsculo, preparado para fortalecer a Igreja, com o equilíbrio e o exemplo do Evangelho, e a inteligência, o sorriso, a determinação e a energia de um Pastor que merece ser amado e admirado pelo seu rebanho.   

JB  Terça-feira, 17 de Dezembro de 2013


segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A EXPULSÃO DOS TRABALHADORES DO FUTEBOL

(Homenagem ao amigo Afonsinho)


Afonsinho - Passe Livre
No rescaldo de um final de brasileirão, há mais do que o lamentável episódio de uma briga de torcidas, aparentemente promovida, aos que viram pela TV, por bruta-montes raivosos.

O ano foi marcado por manifestações contra os gastos públicos em estádios, a prepotência de dirigentes da FIFA e a submissão de governantes aos desígnios do espetáculo comercial, financiados todos pelo povo brasileiro e seus impostos. (Mesmo quando se fala em dinheiro privado, a maior parte é público, já que por nossa constituição a propaganda abate dos impostos das empresas).

A beleza de um casal 20, nada a ver, coroou a artificialidade do espetáculo do sorteio da Copa do Mundo no Brasil.
 


Jango é levado à tumba por parentes,
 amigos e populares em São Borja, 1976.

Isso acontecia enquanto um PRESIDENTE da República, a quem foram negadas pela ditadura militar as honras devidas ao falecer, quem sabe assassinado, era re-enterrado. O significado para o país já tinha sido exposto: o Congresso anulou a vergonhosa sessão, acompanhada por funcionários da embaixada americana, das primeiras horas de abril de 1964. Para uma “necrópsia”, seus restos mortais foram recebidos com honras pelo governo brasileiro em Brasília. Por que levar, grande brasileiro que foi, o reformador João Belchior Goulart, o popular JANGO, à sua última morada, onde estão outros trabalhistas de envergadura histórica?

São reflexões do final do dia para lembrar que a violência nos estádios foi instrumento decisivo para justificar e obter aquiescência da “opinião pública” criada pela imprensa para “globalizar” a exploração do esporte.

Ainda que esse processo de exclusão dos trabalhadores dos estádios de futebol do mundo, conduzido pela FIFA, tenha origem na Inglaterra de Thatcher, é no Brasil de hoje que assume dimensão de política pública e adquire o requinte de verdadeira crueldade, dada a paixão popular por esse esporte entre nós.

Carlos Lessa nos falava, em entrevista na página do Inova RIO, da luta para reinventar a cultura popular sob o assédio permanente das forças privativistas. No epicentro desse fenômeno no Brasil, o Maracanã, isso é, nós todos, fomos assaltados no decorrer do ano, por conluio entre o poder público e empresas privadas. Temos de ser gratos aos jovens manifestantes que denunciaram e expuseram a todos verdadeira trambicagem anti-popular que estava montada.

O recuo do Governador na TV, no entanto, foi teatral. Como o poder público conclui que o contrato tem ilegalidades e coloca nas mãos do grupo empresarial beneficiado decidir se quer continuar ou desistir?

Isso beira o ridículo, uma ópera bufa em meio a uma cerimônia de sepultamento das tradições do Maracanã: - público, estatal e popular, que há mais de 50 anos funcionou bem, até melhor do que nesses dias de hoje, e, claro poderia melhorar, em particular na segurança, não nos cosméticos. Ainda que o policiamento hoje seja, excepcionalmente, muito grande, quem o assumirá junto com os lucros no futuro? Empresas de vigilância na área externa? Mas, mesmo na parte interna, se der tumulto, será visto o quanto despreparada ela é - onde estava no estádio de Joinville hoje?

O Ministério Público que fez campanha pela televisão em meio às manifestações para preservar seu poder de investigação independente, a serviço do cidadão, ajuizou essa causa, mas não vem a público dizer o que sabe, apesar dos reclamos gerais? Quem impetrou a liminar para impedir a ação civil pública contra esse contrato? O estado ou o concessionário?

Não pode passar desapercebido, que se trata de uma política pública, pois os principais instrumentos para efetivar a exclusão dos trabalhadores do futebol são exercidos por serviços concedidos pelo estado.

Não se trata apenas de privatizar o Maracanã e seu entorno por 35 anos, cobrando ingressos a preços exorbitantes, degradando a área da Quinta da Boa Vista, onde a população de boa parte da zona norte passeia nos fins de semana. Trata-se, antes de tudo, da concessão e financiamento publicitário da TV Globo e seus associados que monopolizam a transmissão, interferem, por seus interesses comerciais, no horário dos jogos, inviabilizando a presença de trabalhadores, e os transmitem em pay per view a preços elevados.

A novidade, recentemente divulgada, é que os bares e casas de diversão terão de assinar contratos especiais para colocar esses jogos no ar. Fecham o cerco sobre os botecos da periferia, onde o trabalhador podia ver o jogo com os amigos. Isso é a última perversidade que referi antes.

Mas tem mais, enquanto o transporte público, concedido a empresas, é deficiente, mal distribuído, sempre sacrificando os trabalhadores, e objeto da revolta popular que se alastrou de São Paulo para todo o Brasil, a proposta principal do consórcio, além do shopping travestido de centro de convivência, é construir garagens/ estacionamento para automóveis particulares.

O risco da solução de entregar o Maracanã para um consórcio dos principais clubes do Rio já foi visto pelo valor de ingressos de jogo decisivo pela Copa do Brasil, imposto pelo Flamengo. Até podem fazer parte de um conselho, mas lembremos do Carnaval da Passarela do Samba: o poder econômico sobre essas entidades privadas acaba as tornando instrumento anti-popular. Nesse último Carnaval, depois de muitos anos, voltei à Passarela, e apesar do emocionante espetáculo de sons e cores vi com tristeza o domínio da propaganda comandada pela Globo, ela mesma que se auto-expulsou do Passarela quando Brizola e Darcy a criaram. Nesse processo até os velhos sambistas das escolas foram substituídos pelas ”personalidades” comerciais.

Jair Marinho - Paquetá 2013
Em meio a isso: transmissões dos jogos do Maracanã focam de cima para baixo o campo e os gols. Escondem o vazio dos meios das arquibancadas, o que impactou o "juiz" Jair Marinho: no seu tempo torcedores chegavam cedo para sentar nas laterais do campo! Os microfones são abertos hoje para dar impressão de muita torcida. Um teatro que só fica verdadeiro com um Maracanã lotado com jogos especiais do Flamengo, sabe lá como! Mas ainda saberemos.

A esperança vem do Bom Senso de jogadores, que re-editam maestros dentro e fora do campo. Líderes com responsabilidade social.

PELO MARACANÃ PÚBLICO, ESTATAL, EFICIENTE, POPULAR, mais uma vez modernizado pelo dinheiro do povo do Estado do Rio de Janeiro, e mais e mais generoso e acolhedor com as famílias de aficcionados.

Eduardo de Azeredo Costa, agosto de 2013, complementado em 08/12/2013.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

ESTRATÉGIAS PREVENTIVAS: O CASO DO AMIANTO NO BRASIL

(Homenagem científica a Geoffrey Rose)

Introdução:

O desbravador da cardiologia preventiva no Brasil, professor Aloysio Chechella Achutti, lembrou-me que em novembro desse ano estávamos celebrando os 20 anos da morte de Geoffrey Rose.

Geoffrey Rose foi o orientador de minha tese de PhD em Londres, do que me orgulho. Professor brilhante, crítico agudo das fraquezas das evidências de artigos científicos publicados nas mais renomadas revistas médicas, deixou para os epidemiologistas uma revisão de conceitos de risco e de aplicação dos mesmos em pessoas e populações, que o tornaram um dos mais notáveis epidemiologistas do mundo, ao fazer a ponte técnica entre clínicos e sanitaristas.

Geoffrey Rose
Para homenageá-lo, pouco após seu falecimento, publiquei nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia (Arq.Bras.Cardiol., 62 (5), 289-295, 1994) uma Conferência sobre “Qual a Prioridade: Baixo ou Alto Risco Cardiovascular? – Uma Homenagem Científica a Geoffrey Rose”. Essa Conferência encerrei com palavras de Geoffrey Rose em seu artigo “Strategy of Prevention: lessons from cardiovascular diseases” (BrMedJ, 282, 1847-1851, 1981), que mantém sua atualidade:

“…Nós temos uma responsabilidade pessoal com a prevenção, tanto na pesquisa como na prática médica. Quando os médicos não aceitam essa responsabilidade, a prevenção é assaltada por propagandistas acríticos, por impostores e por interesses comerciais escusos.”

Sinopse explicativa:

Em 2012, o Ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Daudt Brizola, me designou para representar o ministério numa audiência pública no Supremo Tribunal Federal, sobre uma ação de inconstitucionalidade de lei estadual que proibia o uso do amianto no estado de São Paulo. Outros estados também têm essa lei, mas nada existe a nível federal. Após essa audiência foram proferidos dois votos: o Ministro Carlos de Britto antes de se aposentar votou a favor das leis estaduais e o Ministro Marco Aurélio contra as mesmas. Pelo óbvio e incessante envolvimento do Supremo com o caso conhecido como Mensalão, até hoje não ocorreram, creio, outros votos.

Naquela audiência, a minha apresentação, datada de 24 de agosto, homenageou Getúlio Vargas, mas foi baseada exatamente no trabalho de Geoffrey Rose. Para a mesma, vários colaboradores contribuiram com dados.

As apresentações de alguns professores e outros, inclusive representantes de outros ministérios, foi lamentável por demonstrar completo despreparo metodológico e singular viés pró-indústria: impossível não lembrar de novo Geoffrey Rose na frase da introdução.

Argumento central: ocorrem mais casos entre os de baixo risco!
A indústria do amianto no Brasil quer reduzir os casos de mesotelioma com a melhoria do controle nas fábricas, onde o risco individual é alto: 100 vezes maior do que na população geral. Ou seja, uma estratégia de alto risco. Confrontei esse dado, não só com a precariedade do controle nas fábricas, mas com o risco coletivo: na população geral que tem risco relativo tão menor, ocorrem 100 vezes mais casos. Quer dizer, ocorrem mais casos entre os que tem mais baixo risco! A única estratégia para acabar com a maioria dos casos é a proibição total do uso, comercialização e produção do amianto no Brasil, como outros países o fizeram. A força demonstrativa do argumento de Geoffrey Rose causou um impacto considerável. Esperamos que afete os votos dos demais ministros. Mas, se alguém me perguntar porque uma medida provisória ou uma lei do congresso não faz isso, só posso responder que nessa forma de democracia, os interesses privados de multinacionais estão acima dos interesses da saúde.
Para ilustrar, essa publicação anexa o conjunto de diapositivos que utilizei e o link do vídeo da exposição no STF. http://www.youtube.com/watch?v=jBpOuQbimo0

 Slides - http://www.slideshare.net/eduardodeazeredocosta/audincia-pblica-sobre-o-uso-do-amianto

*Eduardo de Azeredo Costa, 30 de novembro de 2013.

domingo, 1 de dezembro de 2013

SOBRE O DESENVOLVIMENTO BIOTECNOLÓGICO BRASILEIRO NA SAÚDE*


EDUARDO COSTA (16/10/2013) RESPONDE À REVISTA FACTO:

FACTO: 1. No contexto da saúde humana, qual a sua visão das possibilidades brasileiras no campo biotecnológico?

EDUARDO:  – O Brasil é um país privilegiado do ponto de vista da biodiversidade, o que representa um manancial de oportunidades para o desenvolvimento de produtos e processos inovadores.  E, ainda,  tem tradição de pesquisa e desenvolvimento biotecnológico ao longo de sua história. Por oportuno, devemos lembrar que fomos inovadores em muitos produtos, especialmente até a década de 60. A vacina contra a febre amarela da década de 30 é exemplar. Nesse particular, gosto de citar uma vacina oral contra a tuberculose, demonstrada de alta eficácia e efetividade contra a meningite pelo Mycobacterium tuberculosae. Substituída por uma injetável desenvolvida no exterior, a pesquisa com ela foi praticamente abandonada. No entanto, o mundo sonha com vacinas orais.


Outro elemento crucial para a efetivação dessa potencialidade é que temos pesquisadores bem formados em inúmeras instituições nacionais.  Bolsas de estudo e financiamento a pesquisas são providos por instituições nacionais e regionais de peso e, inclusive com programas voltados à inovação. E temos um BNDES, um banco poderoso voltado para o desenvolvimento industrial.

E tem mais: ao se falar de saúde humana, o Brasil oferece um quadro bastante desafiante. De um lado, uma situação sanitária ainda precária, comparada a de outros países, mesmo latino-americanos e, de outro, um população que valoriza a saúde, que quer viver plenamente a vida.

O que precisamos, alem de pequenas correções ali e aqui, para tornar essas vantagens efetivas para o desenvolvimento social e econômico brasileiro; para beneficiar a saúde dos brasileiros? Por ora, para os efeitos desse artigo, afirmamos que não são satisfatórios os horizontes da saúde só com novas tecnologias importadas, sem desenvolvimento econômico e social do país.

FACTO: 2. Como vê a participação do estado brasileiro, em especial o programa de parcerias para o desenvolvimento produtivo do Ministério da Saúde, no desenvolvimento de produtos biotecnológicos voltados para a saúde humana?

EDUARDO: – O Ministério da Saúde deu um passo importante ao ampliar a utilização planejada do mercado público para incentivar o desenvolvimento de produtos biotecnológicos necessários para os serviços de saúde. Essa história que, sem dúvida, é retomada ainda durante o regime militar por razões estratégicas, iria se tornar altamente vitoriosa  com os resultados populacionais obtidos, mas, precisou de um outro elemento crucial: o financiamento a fundo perdido, orçamentário, dos laboratórios nacionais, em particular os estatais e para-estatais. Ainda que as referências de preços estivessem presentes, não havia competição entre públicos e privados no campo das vacinas. 

É notório também o distanciamento da pesquisa da produção nesse período e a conseqüente falta de inovação. Produtos foram ficando defasados dos desenvolvidos alhures. A solução inicial foi o estabelecimento de contratos de desenvolvimento local de novos produtos originários, via de regra, de grandes empresas multinacionais, oferecendo o mercado público - indireto - durante alguns anos, como moeda de troca.
Esse movimento propiciou, pelos investimentos públicos, uma modernização tecnológica importante das instituições nacionais e qualificação de pessoal no domínio industrial das técnicas envolvidas.

Mas o passo decisivo para a inovação estava por ser dado e ele foi propiciado pelo desenvolvimento out of the track – não em vacinas. Ou seja a utilização de pdps para produtos biotecnológicos seguiu o esforço para desenvolver uma política na área de medicamentos de alto custo. A necessidade era óbvia: havíamos quintuplicado os gastos na importação de medicamentos em pouco mais de uma década. E o ambiente estava impregnado de políticas dessa década anterior que imobilizavam os esforços nacionais: a extinção da CEME, a adoção das patentes com pipeline, liberalização das importações, inclusive com retirada de impostos de medicamentos de alto custo, e ausência de política industrial para o setor.

Essa história, que pode ser aprofundada, encontrou no programa de combate à AIDS sua janela de oportunidade. Com efeito esse programa com ampla mobilização internacional, a partir de ativistas sociais, é incorporado a órgãos internacionais e o Brasil seria uma referência mundial. Mas havia um detalhe, depois do AZT, desenvolvido localmente por uma empresa brasileira: no setor público fazíamos a formulação, mas importávamos a matéria prima, ainda que algumas empresas nacionais estivessem capacitadas a produzi-las ou com poucos estímulos pudessem vir a fazê-lo.

Marco para superar esse entrave, foi o episódio da licença compulsória do efavirenz que destrói a resistência das empresas estrangeiras. O Ministério da Saúde pode assim iniciar o programa de desenvolvimento produtivo com o setor privado nacional e os laboratórios públicos em arranjo inovador. Esse mesmo modelo servia obviamente para o desenvolvimento de produtos biotecnológicos, cada vez mais utilizados no tratamento de algumas neoplasias malignas.

A importante decisão inicial de arranjos produto a produto, opção lógica do Ministério da Saúde, para entrar numa etapa de arranjos por processos produtivos (extrativos, fermentativos, engenharia genética, síntese, etc.), precisaria de uma estratégia compartilhada entre MDIC, MCT e MS e seus órgãos – ou seja de governo.
E mais, a velocidade, portanto, do processo de soberania nesse campo, dependerá de sua condução política. A condução restrita ao Ministério da Saúde, ainda que com a aquiescência global dos diferentes ministérios, reduz possibilidades de saltos em termos de integração latino-americana e fortalecimento regional. Houve início de entendimentos para a criação de uma binacional Brasil-Argentina que poderia ser desenvolvida justamente com o foco biotecnológico.

FACTO: 3. Considerando a alta densidade científica envolvida no desenvolvimento de produtos biotecnológicos voltados à saúde humana, qual o papel destinado aos laboratórios de instituições científicas e tecnológicas (ICT’s) num país como o Brasil?

EDUARDO: – Estou convencido hoje de que no sistema político brasileiro as instituições públicas de alta densidade tecnológica se tornaram elaboradoras e guardiãs do projeto de desenvolvimento brasileiro com soberania, transcendendo os governos, isto é, detém a possibilidade de um projeto nacional estratégico, que inexiste na administração direta e nos governos, dadas as conjunturas econômicas a que tem que responder o governo e aos legítimos, mas dispersantes, projetos eleitorais. É preciso que elas tenham consciência disso e suas comunidades avancem do campo corporativo para a construção do Brasil do futuro.

* A revista FACTO faz a divulgação corporativa da ABIFINA (Associação Brasileira da Indústria da Química Fina). Para  sua próxima edição (no. 38) solicitou que fossem respondidas as perguntas, que são transcritas.Com a aquiescência da mesma, publicamos com as respostas de Eduardo Costa.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

MEDICINA PÚBLICA E DE MERCADO

(Homenagem a Carlos Gentille de Melo)

Sinopse

As relações da medicina pública com a de mercado sempre foram simbióticas no Brasil. Separar as duas, já que em princípio não são excludentes, envolve antes de tudo um esforço organizacional diferenciado pois seguem lógicas e bases éticas distintas. Uma rápida revisão histórica e visão crítica das possibilidades de avanços do SUS ainda nos desafiam a construir um serviço nacional de saúde, inspirados no NHS inglês.


Primórdios


Gentille - 1963
Carlos Gentille de Melo, que falava dos vícios da “dupla militância”, mostrou também na década de 70 que havia forte correlação entre existência de agências bancárias e presença de médicos nas cidades brasileiras. Ou seja, havia médicos onde a economia comportava a existência de bancos. E o mapa da desigualdade permanece: não surpreende existirem comunidades desassistidas no Brasil. O problema da falta de médicos resulta, assim, da má distribuição dos mesmos, ou do (bom?) efeito do mercado sobre a localização dos médicos e, de resto, acrescentamos, de tudo.

Estado cria gratificação para o pessoal da
saúde periodizando o trabalho
em áreas carentes
Quando secretário de saúde do Rio de Janeiro, ainda antes do SUS, tentamos estimular a re-distribuição dos médicos e outros servidores da saúde do estado através de uma gratificação, aprovada pela Assembléia Legislativa, em 1984, com o nome de Lotação Prioritária, cujo valor dependia da densidade de médicos por habitante. Aplicava-se apenas aos servidores da saúde estaduais pois não tínhamos jurisdição sobre os federais ou municipais. Ingenuamente esperávamos que fosse bem recebida. Não o foi pelas entidades médicas, afinal eles tinham legalmente outros empregos em locais diversos. Mas agradou às auxiliares de enfermagem, por exemplo, porque estariam também mais perto de casa, ganhando mais e gastando menos transporte. Claro que tudo dentro do quadro de lotação da unidade considerado ideal.

Darcy Ribeiro e Cibilis Viana -
Conselho Estadual de Saúde e Higiene
Não seria surpreendente que propugnássemos por um serviço unificado de saúde, sob comando dos estados, democrático e participativo, daí por que, na mesma época, criamos o Conselho Estadual de Saúde e Higiene, no qual tinham assento entidades, associações e sindicatos.

Em 1988, teríamos uma nova constituição, que, diferente de expectativas de criação de um serviço nacional de saúde, criaria o SUS (Sistema Único de Saúde), genericamente inspirado em alguns países com “sistemas” universais de saúde, o que ganhou ampla adesão. O texto básico foi oriundo de uma Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS), precedida em 1986 pela 8a. Conferência Nacional de Saúde. A proposta da CNRS pouco foi modificada em sua essência no decorrer dos trabalhos constituintes, sendo aprovada, com unanimidade, gerando esperanças e defesa intransigente de seus criadores e servidores públicos espalhados pelo país.

Visão crítica

25 anos após, permanecem em sua defesa, ou de seus princípios, os que se engajaram na reforma da saúde brasileira sem discernir que, e por quê, de fato, perdemos a batalha da saúde pública que sonhamos. Na visão de muitos, no entanto, o programa Mais Médicos, de resto, necessário e digno de apoio dentro do quadro atual, denuncia a falha sistêmica do SUS. Esperamos que alavanque  outras possibilidades relacionadas à deficiente atenção primária no país, em particular relacionadas aos cursos de medicina.

Ora, é insuficiente explicar nossa derrota pela “Guerra do Capital” contra o SUS. Por dados do PNUD, 2007, o Brasil é o país com a 5a. maior concentração de renda da América Latina e também o que tem o 5o. pior nível de saúde. Ou seja, de lá para cá, houve melhorias inegáveis, mas o SUS não foi capaz de distintamente provocar uma situação de vantagem sanitária que não fosse o próprio reflexo da situação sócio-econômica do país; seus avanços econômicos e sociais melhoraram a saúde, como também a de outros países latino-americanos. Nada de novo. O novo seria romper com essa relação.

Algumas assertivas em tributo ao SUS, ouvidas comumente, como a existência de experiências bem sucedidas e sobre índices de satisfação de usuários, atestam o oposto. Todos os serviços têm que funcionar bem e o mais homogeneamente possível. Ademais, quando mudam prefeitos costuma haver reversão nesses locais. Quando 70% dos usuários se dizem satisfeitos, podemos pensar que 30% de insatisfeitos em saúde é muito ruim. Para qualquer artigo de consumo seria um desastre.

O tamanho e a população do Brasil não são dificuldades reais para uma estrutura de saúde. Ao contrário, a economia de escala diminui alguns de seus custos unitários. Mas a organização precisa ser diferente.

Referência

Ninguém desconhece que a lógica capitalista é concentracionista e que precisamos de regulação e intervenção do estado para salvar o próprio capitalismo de sua auto-destruição, com reflexos danosos na população como um todo. Elementar explicar que as crises advém, obrigando as transferências de capital, levando a guerras ou deixando rastros perversos.

Após a segunda guerra mundial, os países europeus, em particular a Inglaterra, resolveram modernizar o capitalismo, para benefício de seus trabalhadores e cidadãos como um todo e do próprio capital. Ou seja, começaram a  montar o que se chamou de estado do bem estar social. Ao lado da previdência social, foi concebido um “plano nacional de saúde” gerido pelo estado, público, universal e gratuito no momento da utilização dos serviços, que era a própria negação interna das práticas dos setores econômicos de ponta. Vale dizer que essa decisão é tomada num momento que a infra-estrutura dos país, abalada pela guerra, tinha também de ser reconstruída materialmente.  E sobravam necessidades na saúde da população.

Tal “Plano” reconhecia, sem ser necessário constar de uma lei, que a saúde era direito e dever de todos (todos contribuiriam com impostos). Para garantir a aplicação dessas idéias prevalentes na sociedade, precisava sim de uma lei. A lei criaria o NHS (National Health Service). Na imprensa, entre os defensores do SUS, e no cotidiano, (eu mesmo erro involuntariamente às vezes,) chamamos de sistema de saúde inglês. Não o é; ainda que se possa dar esse apelido que agrada a corrente gerencial neoliberal – na Inglaterra foi criado um Serviço.

Talvez caiba um parêntesis sobre o que é um serviço nacional e rapidamente traduzi-lo a nossas leis anteriores a 1988. Os serviços eram prestados diretamente pelo estado. E, no pacto federativo, conveniada sua prestação com estados e eventualmente com municípios.  A educação pública brasileira era prestada, predominantemente de forma hierarquizada: aos municípios cabia a educação básica, o secundário e escolas técnicas eram estaduais e as universidades federais.

Passeata dos 100 mil.
Foto Evandro Teixeira, 1968
O decreto-lei 200 de 1967 e o decreto-lei 900 de 1969 seguindo a tendência de então, modernizaram, como querem alguns, a administração pública: o governo federal não seria prestador direto de serviços. Quem o faria, no seu nível, seriam as autarquias e fundações públicas. Nessa linha, o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) viraria a Fundação SESP. Unificada a previdência social, as autarquias, INSS e INAMPS, viriam a ser criadas.  Houve forte reação, inclusive na passeata dos 100 mil em 68, contra as universidades virarem fundações. De outro lado os sistemas eram os que atravessavam os vários ministérios coordenados pelo ministérios chaves, como por exemplo o sistema nacional de recursos humanos.

Expectativas frustradas

Talvez por isso, naquela época, os participantes da CNRS não tenham visto instrumentos para unificar todos os serviços públicos, com estruturas diversas e  espalhados em vários ministérios e níveis de governo, numa designação abrangente como a de um serviço nacional de saúde a ser disposto em lei ordinária, daí optarem por um sistema vertical ao invés de transversal. 

Debate na pré-Conferência
Nacional de Saúde no Rio de Janeiro, 1985
Alguns, como eu, pensaram que talvez se o fizesse depois na regulamentação, mas aí a batalha já tinha vencedor: pragmatismo, imediatismo, eleitoralismo, interesses comerciais, prevaleceram. A idéia que tínhamos era que se criaria um serviço nacional federado de saúde, com planejamento e regulação central e ações suplementares em busca da equidade, ou defesa do país, portos, fronteiras, etc. ou de extrema complexidade. Os executores plenos seriam os estados, com assistência técnica e financeira. Nesses poderiam ser constituídos os serviços estaduais autárquicos de saúde, democratizados com os controles sociais, inclusive das prefeituras abrangidas ou contidas; isso é, suas estruturas mínimas seriam em base populacional, podendo repartir ou confluir municípios para tamanhos próximos a 200 mil habitantes: os distritos sanitários.

Cabe dizer que um serviço nacional de saúde planeja com a vista na equidade e não no mercado; na necessidade sentida ou não, mais do que na demanda, ainda que nessa também. Ao ser municipalizado, fica inviabilizada na prática a distribuição equitativa de benefícios às pessoas. O pior mesmo é ficar atrelada diretamente à política eleitoral local bi-anual.

Ernani Braga 1983
Ernani Braga despertou meu interesse pela saúde pública: médico recém formado em Porto Alegre, vim ao Rio para ser contratado pela Fundação SESP. Meu destino seria o interior do Amazonas. Aquela fantástica instituição tinha todos os elementos que aprendi fundamentais para colocar um médico no interior com equipe e recursos mínimos, tempo integral, sem clínica particular. Ações eram quantitativamente e qualitativamente planejadas e supervisionadas, treinamento em serviço, integração com a comunidade local. O prefeito também aguardava consulta na sala de espera. Naquela época pensava que o serviço médico obrigatório em unidades como aquelas, o que acontecia na fronteiriça Letícia da Colômbia, devia ser implantado no Brasil.

Triste dizer que a Fundação SESP foi desativada pelo SUS, suas unidades transferidas para as Prefeituras.

O Brasil tenta emplacar o programa de saúde da família e não forma médicos generalistas, mas sim especialistas, que o mercado, inclusive o público, demanda. Ademais, parece ser esse um programa para os lugares pobres, mais remotos ou periféricos, mas não para a população como um todo, gerando distorções que comprometem o custo dos serviços, abuso de tecnologias caras e desnecessárias. Daí porque nos últimos dez anos nosso déficit anual no balanço de pagamentos em itens da saúde  passou de 3 para 12 bilhões de dólares. Atrás do “sistema universal, integral da saúde”, com esse modelo assistencial, o país recebe uma conta gorda.

Atenção básica e integral

Unidade Mista (sanitária e hospitalar)
da Fundação SESP em Benjamin Constant, 1967
A história do NHS pode ser chamada de heróica nas suas duas primeiras décadas e extremamente responsável e eficiente, levando ao reconhecimento de suas vantagens sobre os demais serviços europeus e sendo absorvida, no que cabia, por vários países do mundo. Em seus detalhes podemos ver como transformou uma indústria farmacêutica incipiente em muito poderosa com controle estatal de preços ao NHS e distribuição gratuita ou pequena co-participação dos usuários, para o que decisivamente possibilitou o estatuto do médico generalista. Lembremos que Itália, Portugal e Espanha fizeram suas reformas constitucionais na década de 70, incorporando, em particular, a questão da porta de entrada universal com o médico generalista na atenção básica.

Na Inglaterra, falta lembrar, os serviços privados de saúde precários foram fechados e alguns estatizados. No Brasil, já que a CNRS tinha representantes do setor privado prestador de serviços de saúde, foram preservados.

O regime de pagamento diferenciado a prestadores de saúde, como os médicos generalistas, na Inglaterra, é por captação, isso é, quantos pacientes os elegem como seu médico (podendo trocar se insatisfeitos) e não por atos médicos – consultas, procedimentos, etc. O pagamento por unidade de serviço oriundo de nossa medicina previdenciária subsistiu no Brasil pós-SUS.  Assim pode-se pagar um X pela retirada de uma amídala ou duas se for no mesmo ato, e se em dias diferentes pagará 2 X.

Planos de saúde

Mas não foi apenas a forma de pagamento ao setor privado do INAMPS que ainda se faz presente no cenário da saúde pós-SUS. As características dos planos de saúde também foram legadas pelo período autoritário. Ainda que aos planos individuais tenham sido estabelecidos parâmetros, muito pouco de então diferem os planos de grupo. As grandes empresas que contratavam serviços médicos descontavam o custo do mesmo de parte de sua contribuição previdenciária e hoje abatem do imposto de renda, mas não há controle efetivo sobre sua qualidade e, a um grave problema, ficam sujeitos os trabalhadores incluídos: a vulnerável confidencialidade de seus dados. E ainda mais grave, é o fato de empresas estatais, fundações públicas e mesma a administração direta propiciar planos de auto-gestão e privados comerciais paralelamente ao SUS. Por isso,  cerca de 25% dos brasileiros são beneficiários de planos de saúde privados (2009), sendo em boa parte financiados por recursos públicos. Simultaneamente  assalariados gastam com planos privados o que o SUS deveria cobrir.

A ampliação do mercado consumidor de planos de saúde também é um sintoma da falta da credibilidade do SUS como direito do cidadão (na Inglaterra não chegam a  5% os que têm planos privados). Quando ter um plano de saúde é visto como uma conquista, seja corporativa ou de consumo, e não como uma capitulação pragmática do usuário a seu direito de cidadania, tendo em vista a falta de pronta acessibilidade e precariedade do SUS, temos a prova de que  a "saúde como direito de todos e dever do estado" é de fato uma assertiva constitucional abstrata sem base social que a sustente.

Conclusões

Numa certa perspectiva, no Brasil, podemos dizer que não houve a reforma sanitária do pós-guerra europeu, mas uma reforma essencialmente administrativa com um componente participativo novo, representado por um “controle social”. A ingenuidade é que num país com os resíduos escravagistas e coloniais, onde justiça e soberania são retóricos, uma solução funcionalista – sistêmica, seja capaz de catapultar esses valores.

Como no sistema “único” não houve a unificação dos serviços de saúde existentes, sendo sua gestão ainda municipal, estadual, federal ou privada, restou impossível na prática o planejamento e a gestão para a equidade. (A equidade é a verdadeira ética republicana na saúde.) Em seus lugares, um emaranhado de planejamento integrado de níveis de governos e ongs tentando juntar as partes fragmentadas para implantar programas, com alto custo burocrático e midiático. Os esforços se sucederam para regionalizar e integrar serviços nesses anos, sem sucesso.  A poderosa mística do SUS, como toda mística, mitiga a dor, mas não dá solução para os choques de realidade. Por isso precisa ser repensado.

Impossível, também, plano de carreira com isonomia para todos os servidores da saúde e não só para médicos. Mas, se quase metade do orçamento brasileiro inicia o ano compromissado, como atender a todos? Privatizando, estimulando os planos privados de saúde?

Na mistura de medicina de mercado e desejo de uma medicina púbica salvam-se médicos que acreditam que são “filhos de Deus” – se todos querem levar a melhor, por que só médicos são sacerdotes?  E também todos os que, por domínio social (categoria , nível educacional ou informação) precisando de assistência individual, conseguem se mover usando o melhor dos serviços privados e públicos (alta complexidade, doenças raras).

Tanto quanto se sabe, os royalties do petróleo do pré-sal vão salvar a saúde da carência de recursos atual. Resta saber quem vai salvar a medicina pública dela mesma, ou seja, de suas ligações viscerais com a medicina de mercado, para não continuar tudo como está, mas com mais dinheiro público.

A receita é antiga: um serviço público nacional de saúde.

Em 12/11 revisado em 18/11/13.


* Eduardo Costa é médico-sanitarista.