quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CENTENÁRIO DE RUBENS MENA BARRETO COSTA

Uma homenagem 


Meu pai, Rubens Mena Barreto Costa, nasceu no dia 27 de novembro de 1914, em Porto Alegre; hoje completaria 100 anos de existência, não tivesse falecido em junho de 1992. Filho de Cantalício Luis da Costa e Hermelinda Menna Barreto Costa.

Não teve uma vida que passou desapercebida pela comunidade onde cresceu. De fato, muito cedo, ainda como estudante e como médico, daria passos importantes que marcaram seu pioneirismo e sucesso profissional. Do mesmo modo, construiu sua família, casando aos 27 anos com Lygia Bossle de Azeredo, nascida em 14 de abril de 1921 em São Francisco de Paula – RS. Dos três irmãos, Francisco, Margarida e eu, restamos dois com a perda da única e querida irmã.

Como filho, vejo a página em que escrevo como um vasto leito branco impreenchível para falar de nosso pai como figura humana, como pai. Mas meus inúmeros colegas que o conheceram não me perdoariam se não desse hoje uns poucos dados do seu “curriculum” - alguns estão registrados no livro “50 anos desta Noite” (Ed. Nitpress), que publiquei em 2011.

Morou na cidade de Rio Grande na sua juventude onde concluiu o segundo grau, indo estudar em Porto Alegre, na Faculdade de Medicina da URGS, formando-se em dezembro de 1940 (casaria no dia 04 de janeiro de 1941). Viveu nesses anos a luta da esquerda contra o fascismo no Brasil, ao tempo em que, além de estudar, tinha de fazer sua subsistência como professor de Biologia, primeiro na Escola Técnica de Agronomia (onde teve Brizola como aluno) e logo no Colégio Estadual Júlio de Castilhos (onde eu cursaria o colegial).

Ainda estudante, publicaria um livro, em 1940, com a co-autoria de Joaquina Muniz Reis: Alimentação e Saúde: Guia Prático de Alimentação Racional (Ed. Livraria do Globo). Naturalmente, à época, foi abrindo o campo da endocrinologia e nutrição, como especialidade médica, mas com base clínica geral – a Medicina Interna de então. A pretensão de especializar-se nos Estados Unidos caiu, quando não obteve visto por suas atividades politico-estudantis.

Como professor e médico acumulava dois cargos estaduais; assim, após formado, se tornou clínico do hospital psiquiátrico São Pedro e como professor foi lotado na Secretaria de Educação para organizar a alimentação escolar, onde também fazia pesquisas sobre as condições nutricionais dos escolares. Ao mesmo tempo, trabalhava voluntariamente, o que era visto como retribuição comunitária, no serviço chefiado por Rubem Maciel na Santa Casa, que recebia os estudantes da Faculdade também.

Corpo clínico na Santa Casa. Sentados: Drs. Nedel, Terra,
Rubem Maciel,Mena Barreto e Pereira Lima.
(Foto publicada na Zero Hora em 2013
por ocasião do centenário de Rubem Maciel.)
A ascensão profissional foi meteórica e em poucos anos sua clínica particular “bombava”: tornou-se um “medalhão”. Lembro de menino ir ao seu consultório com a sala de espera sempre lotada, sendo frequente que começando às 14 horas só terminasse de atender às 21 horas, indo depois às visitas domiciliares.

Mas, minha memória mais vívida era das aulas que dava para as professoras da rede estadual - assisti a algumas na década de 50. Nelas sempre tinha a parte prática de preparo de refeições e pratos especiais com uso de soja como reforço proteico. Ensinava a fazer leite de soja, com máquinas rudimentares de moer carne, adicionando sabores, e/ou misturava o leite ou farelo em bolos e outros pratos dos lanches, que exigiam o acompanhamento com uma fruta fresca.

Simpatizante do Partido Comunista Brasileiro, contribuía financeiramente e distribuía cédulas dos seus candidatos nas eleições (assim comecei na política). Em nossa casa recebíamos a visita de vários comunistas de destaque (me permito citar apenas um: Delcy Silveira, combatente na Guerra Civil Espanhola) e já aos quatro anos de idade eu era levado pela mão para assistir a comício de Luis Carlos Prestes.

Na década de 60, meu pai foi convidado a ministrar a cadeira de endocrinologia e nutrição da faculdade católica de medicina que eu também começaria a cursar. Ali o conheci, para além da clínica, como um visionário da saúde pública, que denunciava e dava os caminhos para acabar com a fome e a desnutrição no mundo.

Em 1960 escreveria um ensaio sobre “Alimentação e Liberdade” publicado no livro Rio Grande do Sul: Terra e Povo (ed. Livraria do Globo, 1964). E logo prepararia para nosso curso a monografia: Aspectos da Nutrição Humana no Rio Grande do Sul, 1965. No biênio 1964-66 seria o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Nutrição, sendo seu colega Henry Wolf o presidente.

Os conhecimentos que fez como médico, que incluíam desde Maneco Vargas até o Arcebispo de Porto Alegre, me livraram de maiores represálias a partir de 1964. Quando eu optei pela Saúde Pública, me apoiou dizendo que era seu sonho também.

Ao deixar o Rio Grande, em 1967, me afastei do cotidiano do meu pai e da minha grande família gaúcha, mas a presença dele, como de todos, quisesse ou não, se impunha. Aqui no Rio, todos endocrinologistas, inclusive Fernando Ubatuba, um dos cassados de Manguinhos, o conheciam, e encontrei um admirador seu que me ensinou bastante sobre meu pai: Luis César Póvoa, nosso amigo falecido recentemente.

Na sua casa trilharam muitos nomes da redemocratização brasileira a partir de 1979, no centro delas Brizola; Teotônio Villela, entre outros por lá passaram.


Já secretário de saúde no Rio, invariavelmente minhas atividades com Brizola começavam com: “Como vai o Professor Mena Barreto?” ou “Como vão os velhos?” mais informalmente. O programa de alimentação dos escolares no Rio de Janeiro de Brizola e Darcy tinha a sua chancela: o apoio que deu para o retorno de Brizola do exílio teve dele o reconhecimento na forma de implementar a alimentação nos CIEPs. 

Luiz Varo Duarte, em Fome no Sul, Mito ou Realidade, de 1985, disse: "...todos os projetos de programas nutricionais em prol da criança hoje propostos já estavam equacionados há mais de 40 anos pelo Professor Mena Barreto."

Não por menos, recebeu, ainda em vida, do prefeito Alceu Collares o título de cidadão porto-alegrense.

Meu pai e minha mãe na descontração de uma festa.
A nossa grande família gaúcha nutre até hoje verdadeira reverência pela memória do meu pai. A todos, como médico e como amigo, muitas vezes conselheiro afetivo, atendia no consultório, em casa ou em suas casas. Nossa casa, com minha mãe acolhia parentes e amigos por períodos curtos ou longos, com a típica hospitalidade gaúcha, e muita alegria.

Com a doença de minha mãe e sua morte, em 1988, que sacudiu como um terremoto todos nós, sua saúde também foi abalada.

Nos seus últimos dias, num CTI, pensei, como penso até hoje, o quanto deixei de aproveitar seu convívio, seus conselhos, seus conhecimentos, seus pensamentos mais amadurecidos. 

Nos deixou mais do que bens, ou um belo exemplo: a sensação de insuficiência para poder alcançar e trilhar a vida de doação pessoal e humildade que balizaram sua vida. Mas também a certeza de se saber o que há que se fazer nesse mundo.

Rio de Janeiro, 27 de novembro de 2014.

Eduardo de Azeredo Costa

11 comentários:

  1. Eduardo, bonita a história de vida de teu pai. Ele era 14 anos mais velho do que eu, por isso não nos cruzamos. Mas ambos tivemos um percurso colegial no Julinho - Colégio Júlio de Castilhos. E outro percurso paralelo foi o fato dele ter sido professor do Brizola na Escola Técnica - pois depois na Faculdade de Engenharia o Brizola foi meu contemporâneo, embora alguns anos mais velho do que eu. Você deveria ter postado datas para que nossas lembranças se cruzassem no tempo. Abs. Nelson

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    1. Nelson, o mesmo Nelson de sempre!
      Creio que ele foi professor da ETA em 37/38 e do Julinho em 39/40. Brizola era oito anos mais novo que meu pai, pois nasceu em 1922, tinha 16 anos em 38.

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  2. Querido Amicor Eduardo,
    Vou colocar um link para este texto no meu blog.
    Eu tive o prazer de conhecer Dr. Rubens Mena Barreto Costa antes de te conhecer e de nossas aventuras pela epidemiologia da Pressão Arterial e outros fatores de risco. Foi importante em minha vida minha experiência na SEFAE, com saúde escolar, aprendi a respeita-lo como endocrinologista e nutrologo desde o tempo em que tive maior contato com os Professores Faraco e Rubens Maciel, mais adiante tive a honra de ter sido chamado por ele para ajudar a tratar Dona Lygia.
    Tenho grata memória de ambos e por terem gerado um de meus mais queridos amigos que me oportunizou participar da pesquisa que coordenaste e de me apresentar nosso saudoso Professor Geofrey Rose.
    Um abraço
    Aloyzio Achutti

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    1. Querido e generoso Professor Achutti! Você, como meu pai, foi pioneiro num campo especial da saúde pública brasileira: o das doenças cardiovasculares. A tua contribuição é impar e sustentada até hoje pelo notável AMICOR. Tenho grande admiração pelo teu trabalho e tua vida familiar com a Valderez e todos descendentes e agregados. Agradeço a transcrição. Abraços do Eduardo

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  3. Querido Dado,
    Linda e merecida homenagem.
    Tuas palavras me fizeram reviver períodos da minha vida desde a infância e a convivência e aprendizado que tive com teus pais.
    O tio Rubens o amigo, o médico, o conselheiro para as mais diversas situações. Doenças? Problemas? Vamos consultar o Rubens. Até para minha rebeldia de adolescente foi a ele que meus pais recorreram.
    O que poucos sabem é que foi por orientação, conselhos do tio Rubens que escolhi e cursei enfermagem, mais uma vez ele acertou. Devo a ele ser Professora, Enfermeira realizada na minha profissão.
    Com a tia Lygia desfrutei de momentos alegres, a crítica inteligente característica marcante dela, e minha iniciação e gosto pela política.
    Beijo e um grande abraço

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    1. Querida Beth, a menina das bochechas rosas! É sempre bom ler as tuas meemó
      frias, tantas compartilhadas comigo. Beijos

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  4. Eduardo, as lembranças de pessoas importantes em nossas vidas são tão frequentes em textos que os leitores "viciados" na crítica como uma necessidade vêm tais textos como uma concessão meramente afetiva. Aí é que surge outra questão como tudo que é humano. Nunca passe rapidamente por cima de uma narrativa ou de uma expressão. Este texto sobre teu pai é densamente afetivo, até lamenta o menor tempo de convivência como se fosse possível esgotar personagens como ele até mesmo numa eternidade. Mesmo assim ele é extremamente crítico. No sentido em que levanta a questão da desnutrição infanto-juvenil em nosso país, especialmente nas crianças das escolas públicas. Quando ficamos lendo este momento de uma exacerbação plutocrática, com enorme concentração da renda e milionários achando que vivem no Olimpo e que toda a ciência deverá vir a serviço de sua imortalidade, é alentador conhecer a narrativa de um cientista que dedicou-se ao avanço do conhecimento em sentido coletivo. Da igualdade e da superação de momentos históricos miseráveis. E agora um ponto final: o velho PCB é tudo de crítica, mas de uma lastro que jamais as mentes mais críticas poderão esquecer.

    Abraços

    José do Vale Pinheiro Feitosa

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  5. Olá Caro Dr. Eduardo Costa, foi com um imenso prazer que encontrei o seu blog, pois estava muito querendo saber como andava o Sr. Sou Bertha Nutels ou melhor Bertha Noevna Nutels (Bertha filha de Noel Nutels) e fiquei muito emocionada ao ler a história de seu pai. São coisas raras no nosso país, o que é uma pena!!!! E puder entre em contato para conversarmos um pouco, tenho muita coisa para falar. Um abraço muito carinhoso Bertha Nutels (berthanutels@gmail.com ou (21) 2225-3282 ou (21) 99611-8545)

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    1. Querida Bertha, tão bom saber de vc! Afinal não nos vemos há muitos anos. Vc sabe da minha enorme reverência ao teu pai, o grande Noel Nutels. Claro que eu gostaria de conversar contigo, saber da tua vida. Parei de escrever no blog há quase um ano e eu pensava que era pela questão política apenas. Muita decepção e poucos pensamentos conclusivos sobre a luta pela verdadeira democracia no Brasil. O q nao me impediu de continuar sempre me manifestando contra a violência do estado e a pregação fascista que estamos assistindo.
      Mas só com o teu postado percebi que havia outra coisa, pois não lembrava que o último artigo foi sobre meu pai. Percebi que foi um novo luto, com uma dose de desânimo que trás. Em homenagem a vc meu próximo artigo vai ser sobre o Noel que eu convivi, o que ajuda a devolver a alegria da justa luta libertária. Bjs Eduardo.

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  6. Prezado Doutor,
    Sou filho do Dr. Pedro Valente e gostaria de conseguir seus contatos pois meu pai gostaria de entrar em contato. Meu e-mail é pvalente@ me.com.
    Forte abraço
    Pedrinho

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  7. O Professor Dr. RUBEN MENA BARRETO COSTA foi meu medico e amigo no início dos anos 1970. Nos fins de tarde uma vez por semana eu ia ao seu consultotio na Galeria Chaves, em Porto Alegre, ali na Rua da Praia, ver como estava meu sistema gastrointestinal e conversar com meu brilhante amigo e intelectual DR. RUBEM. Após nossas conversas ele me dava caro na em seu Mercedes Benta até a Praça Júlio de Castilhos, onde residia. Eu morava ali perto. Sua sabedoria e inteligência iluminava a vidacdecseus clientes e amigos. Fui um privilegiado em tê-lo como amigo. Paulo Sergio Arisi jornalista.

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