segunda-feira, 15 de março de 2021


FORTALECER O SUS – TAREFA NACIONAL*

A propósito da epidemia do COVID-19 no Brasil 


                                                                                                                Eduardo de Azeredo Costa**

            Vai passar? Sim, vai passar. E ninguém tem dúvida de que a humanidade sobreviverá e continuará sua história na Terra. Cremos que deixará legados. Bons e maus. Quais serão, para além de uma tênue memória do episódio, 100 anos depois, como a da pandemia da gripe espanhola de 1918/19?

            A economia agro-exportadora continuou no Brasil, apesar dos episódios nefastos como o de navios não poderem atracar por epidemias à bordo (menos significativos do que à época da epidemia de Febre Amarela no Rio de Janeiro - poucos anos antes). Afinal, o modelo tinha sobrevivido também à Greve Geral de 1917.

            A explosão de alegria no Carnaval seguinte precisou ser lembrada por pesquisa aos periódicos de então. Mas, houve hipótese também de dano mais prolongado do que as milhares de mortes daqueles meses. Suspeita-se que a epidemia de infartos e doença coronariana, das décadas 1940-50, possa ter sido um legado tardio.

            Antes, perdido na rememoração do final de 1918 no Brasil, veio à tona que o quinino foi usado para tratar pacientes, o antimalárico usado à época. Não surpreende, pois, que agora, por analogia, a cloroquina venha à cena.

            Não veio, no entanto, uma ação do Governo na área de saúde que dá frutos até hoje, em que pesem problemas variados ao longo da história das instituições nacionais de saúde.

            A criação do “Serviço de Produção de Medicamentos Officiaes” (SPMO) data de 1o. de maio de 1918, por Decreto Presidencial no. 13.000, que definia que se localizaria no Instituto Oswaldo Cruz; seu objetivo era produzir quinino e outros medicamentos. A epidemia no Brasil aparentemente começou em setembro daquele ano, a ação foi de longo alcance. E o presidente atento à saúde e higiene, que antes nomeara Oswaldo Cruz, e agora depositava a confiança em Carlos Chagas, faleceria vítima da espanhola. Passada a epidemia, o medicamento ainda interessava para o combate à malária, foi construída a pioneira fábrica de quinino na fazenda de Manguinhos, logo atrás do Castelo de Oswaldo Cruz. Farmanguinhos /Fiocruz é sua sucessora.

Em 2008, descortinado esse fato, descerramos uma placa comemorativa no Complexo Tecnológico de Produção de Medicamentos em Jacarepaguá, com a presença de Chefe da Casa Civil Dilma Rousseff e do Ministro José Temporão. Mais tarde ainda entregamos a primeira partida de Efavirenz (crítico para a AIDS), totalmente produzido no Brasil e sob controle direto de Farmanguinhos em ação inovadora. Essa ação estatal, ao contrário de prejudicar iniciativas produtivas farmoquímicas privadas nacionais, iniciou o processo de salvá-las e desencadeou outras ações de governo coerentes.

Paulo Buss, então Presidente da Fiocruz, Dilma Rousseff, Chefe da Casa Civil,
José Temporão, Ministro da Saúde e Eduardo Costa, Diretor de Farmanguinhos
 descerram a placa comemorativa dos 90 anos da criação do Serviço de Produção
 de Medicamentos Oficias em 2008. 

            Talvez, possamos estar errados quanto à opinião de que a criação do SPMO foi o maior benefício para o Brasil trazido pela gripe espanhola há cem anos. Mas 

            E agora? Além de importar equipamentos, como respiradores e produtos, como testes diagnósticos, o que faremos? A produção nacional diz da soberania, mas principalmente de não ficar inermes frente à escassez mundial, deixando de servir ao povo brasileiro. Temos capacidade tecnológica para tanto, mas as armadilhas da tradição exportadora de produtos primários nos fez refém de importações que destruiram nossas indústrias privadas.

E quem trabalhou em laboratórios como o Instituto de Pesquisas Biológicas de Porto Alegre, Instituto Adolfo Lutz, Instituto Oswaldo Cruz, Instituto Evandro Chagas e outros, sabe da capacidade que é atropelada pela importação, mas também pela falta de planejamento na saúde, que depende da definição de programas de grupos técnicos ad hoc, e, antes de nos preparamos para supri-los, deslancha-se programas de compras por importação.

Assim, somos levados a pensar no tipo de legado para o SUS, agora. A defesa da indústria nacional é crítica para os sistemas de saúde, especialmente nos momentos de crise. Enquanto a criação do Serviço Nacional de Saúde inglês alavancou a indústria britânica de medicamentos que, de importadora, passou a exportadora, não criamos as bases para isso na farmoquímica brasileira. Na área de imunobiológicos, liquidamos com nossos produtos pioneiros por falta de inovação e passamos a importar tecnologia das multinacionais.

Esse fato demonstra que o projeto nacional de desenvolvimento é condição necessária para o fortalecimento do SUS. E para ele estabelecer um planejamento do Ministério da Saúde que o respeite e para ele contribua – uma interação necessária.

FORTALECER O SUS é também liberá-lo de riscos do trabalho e do ambiente, através de todo o sistema produtivo e ambiental, bem como do efeito danoso do abandono social da população, da cruel desigualdade social. FORTALECER O SUS é propiciar educação para todo o povo brasileiro para que possa se proteger e cuidar dos seus familiares. Assim o SUS poderia dedicar-se ao que é central na sua missão.

Dito isto, há também de FORTALECER O SUS por dentro ou em si. O que precisa ser o SUS renovado? Um sistema de saúde universal que garanta a prestação de serviços de saúde adequados à população brasileira com equidade.

O SUS, no entanto,  não é o único prestador de serviços de saúde no Brasil. Aliás, como sistema, ele não é um ente, não presta qualquer serviço. As entidades de saúde, públicas e privadas, filantrópicas ou lucrativas é que prestam os serviços. E o SUS os financia. Paralelamente ao SUS, há outros prestadores de saúde privados do sistema de saúde dos planos privados ou autônomos (muito marginalmente) hoje, que não são financiados diretamente pelo SUS, mas sim diretamente por usuários, ainda que recebam indiretamente benefícios do Estado (inclusive como abatimento de imposto de renda dos que ganham mais). Para regulamentar o segmento de prestação de serviços privados de saúde foi criada a Agência Nacional da Saúde Suplementar. Como também foi criada a ANVISA para cuidar dos padrões de qualidade de produtos sanitários.

Das características do SUS, enquanto tal, e não de todo o setor saúde brasileiro, resultam alguns problemas que precisam ser sanados para que seja fortalecido internamente. Vamos focar em apenas dois deles.

A fragmentação dos prestadores por entidades com abordagens e interesses diferentes, reduz a capacidade de planejar nacionalmente e mesmo localmente, resultando daí a má distribuição dos recursos, provocando inequidade no acesso e na qualidade dos serviços. Isso, no caso brasileiro, fica mais sério ainda, dada a urbanização descontrolada na falta de políticas habitacionais, de saneamento, de transportes, educacionais, enfim, econômicas e sociais agravadas durante a ditadura militar e não respondidas a contento nesses 30 anos, pós CF88 e Lei 8080/1990.  Na crise atual agrava-se na distribuição dos leitos de UTI, que seguem padrões mercadológicos.

A outra questão se refere aos recursos humanos para a saúde. Essa mesma característica do SUS, não permitiu a criação nacional de uma carreira de servidores do SUS. Ora, há prestação por entidades públicas de saúde federais, estaduais e municipais e privadas. E mesmo na área pública, inclusive com políticas neo-liberais de precarização de contratos trabalhistas e de legislação de controle fiscal, grande parte dos trabalhadores da saúde são terceirizados ou seja, não têm a característica de estabilidade para o treinamento continuado e o convívio prolongado com as comunidades, que são a melhor característica da atenção primária de qualidade.

Os servidores do front sanitário, particularmente nos hospitais, nessa epidemia, como soe acontecer, são os mais expostos ao risco de adoecer e morrer. Pela natureza da exposição ser íntima, como especialmente com o pessoal de enfermagem e serviços de limpeza, por ser prolongada e submetida a altas cargas virais. 

Nessa pandemia, a sociedade tem manifestado seu reconhecimento pela dedicação e tem valorizado os trabalhadores da saúde, em todo o mundo. Na Espanha criou-se um ritual matinal de aplaudir das janelas os trabalhadores da saúde que vão assumir seus postos. E mais deveriam ser aqui no Brasil, onde suas condições de contrato e trabalho são precários. Não é incomum que um técnico de enfermagem trabalhe em até três hospitais diferentes, no regime de plantão, com contratos diferentes, para poder ganhar o suficiente para manter sua família. Com isso, também são vetores de transmissão da doença para suas famílias e comunidades, e vários mandaram seus filhos para casa de outros parentes nesse momento.
No entanto, isso não acontece só agora, a incidência mais elevada de várias doenças está entre o pessoal da saúde todo o tempo. Um dos exemplos críticos é com a hepatite C.

Por tudo isso, está na hora da Carreira da Saúde. Preferentemente em tempo integral. É tão estratégico quanto a das forças armadas para a segurança nacional. E nos deixa um legado indelével do enfrentamento ao Coronavírus, que vai nos servir por mais 100 anos. Será sempre lembrado que a outorga foi por sua dedicação ética, seu destemor e sua disciplina profissional.
Claro que para isso precisamos fazer do SUS um Serviço Universal da Saúde, o fortalecendo. Planejamento central, que não seja o apenas o orçamentário, mas o estratégico, voltado para a equidade. E preparo de unidades flexíveis de saúde para movimentação tática.
De início criar os SES – Serviços Estaduais de Saúde, públicos, universais a nível estadual. Os serviços municipais deverão ser diretamente coordenados por cada estado.
Outro arranjo poderia ser a criação de um Instituto Nacional de Saúde Pública.

Não propomos, portanto, Mais SUS, ou Defender o SUS, a proposta é a união nacional para FORTALECER O SUS, como Objetivo Nacional permanente, com a criação do Quadro Nacional de Servidores Públicos da Saúde.

* Esse artigo foi redigido em 5 de abril, revisto em 6 de abril, para publicar no dia 7 de abril de  2020, celebrando o dia mundial da saúde. Revisado foi publicado como editorial em: http://www.escs.edu.br/revistaccs/index.php/comunicacaoemcienciasdasaude/article/view/663 
** – Eduardo Costa é médico-sanitarista, PhD em epidemiologia. Atualmente é Assessor de Cooperação Internacional da ENSP/Fiocruz.

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Prezado Leitor: 

Depois de quatro anos sem postar no meu blog, no início da pandemia da COVID-19, decidi vestir minha camisa de sanitarista e epidemiologista e contribuir numa perspectiva mais técnica para o que o sofrimento das pessoas me chamava mais diretamente. Senti como uma obrigação ética profissional.
Escrevi esse artigo em abril do ano passado, o coloquei aqui para edição e resolvi não publicá-lo sem que antes o fosse por uma revista científica. Mas ficou como bala na agulha não disparada.
Depois, com a nova dinâmica de comunicação com as muitas "lives", no estilo que nossa vida se desenvolveu, resolvi atuar mais diretamente nas discussões abertas. Achei também que esse blog não tinha bem o padrão que eu queria imprimir de debate focado na pandemia. 
Já extenuado agora, e vendo a dificuldade de poder contribuir mais diretamente, resolvi consolidar esse trabalho, e me desgastar menos nesse vai e vem midiático. Resolvi iniciar um capítulo novo do blog sem a parte político-partidária*, mas na mesma temática de política e saúde pública, que focará na COVID-19. Espero que funcione como penso. 
Abraços, agora vacinado, a todos, que ainda não o conseguiram graças a muitas trapalhadas, erros e até vigarices nacionais e internacionais, com destaque para o Governo Federal brasileiro nesse dia de hoje que cai o 3o. ministro da saúde.

Saúde!

(* Esse movimento também evita focar na mudança partidária que fiz e que talvez já estava claro, mas que pode ficar para ser discutido mais adiante.)




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