sábado, 20 de março de 2021

EDUARDO COSTA fala sobre

AS VACINAS ANTI-COVID-19 DISPONÍVEIS NO BRASIL

                  



Joyce Enzler entrevista o professor Eduardo de Azeredo Costa da ENSP/FIOCRUZ para a Rede de Escolas de Saúde Pública da América Latina - RESP-AL.

    De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), 214 vacinas estão sendo produzidas no mundo. Dessas, 52 foram testadas em humanos. Enquanto cientistas tentam parar a escalada rápida da Covid-19 no planeta, alguns governantes e empresários só pensam no lucro que as vacinas podem dar materialmente ou eleitoralmente, jogando o conceito de saúde universal com equidade na lata de lixo da História.  Passamos por um momento crítico, onde perdemos mais de dois milhões de seres humanos no planeta por causa da Covid-19, porém em um lugar  marcado por fome e violência, parece que a maioria da população se acostumou com a necropolítica, naturalizando as mortes que chegam antes da hora, arrastando principalmente idosos, pobres e negros. 

    Para conversar sobre vacinas, cooperação entre os países ou a falta dela, a Rede de Escolas de Saúde Pública da América Latina (RESP-AL) convidou o epidemiologista Eduardo de Azeredo Costa. Com larga experiência no currículo, foi secretário de Saúde do Governo Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, entre 1983 e 1986 e Secretário Nacional de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde 2015/6 no Governo Dilma Rousseff; formado em Medicina;  mestre em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz e doutor em epidemiologia pela Universidade de Londres. Eduardo Costa é professor titular aposentado do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (DEMQS/ENSP/Fiocruz). 














A entrevista consistiu de perguntas respondida
por escrito pelo Professor Eduardo A. Costa em
28/02/2021 para divulgação na RESP-AL. 


RESP-AL: P1 - Em qual contexto foram criadas as vacinas contra a Covid-19? Porque elas são confiáveis, mesmo produzidas em tempo recorde?

EDUARDO COSTA: Penso que é importante discutir a primeira parte da pergunta mirando, em particular, sobre o empenho científico pré-COVID-19 para controlar doenças com potencial pandêmico nesse século 21, sem me deter na grande questão política do pós-11 de setembro e consequente alta concentração de esforços para detectar possíveis agentes que poderiam ser usados como armas biológicas. Vou separar minha resposta em duas partes para responder ambas as perguntas:

1.a) A Covid-19 nos reservou várias surpresas bem ruins, especialmente ao demonstrar a vulnerabilidade do controle sanitário frente à destruição ambiental planetária.  Mas, algumas circunstâncias e suas características a deixaram mais vulnerável ao controle sanitário. Uma delas foi o fato que nos últimos dezoito anos dois outros coronavirus, antes confinados apenas a animais, saltaram para a transmissão inter-humanos. No primeiro surto, agora chamado de SARS-CoV1 (síndrome respiratória severa aguda por coronavirus, identificado em 2003), foram realizadas muitas pesquisas básicas com esse vírus, porém como tinha baixa infectividade, houve controle apenas com medidas de vigilância epidemiológica.

"Seu código genético foi distribuído para todos os laboratórios importantes do mundo no dia 10 de janeiro de 2020, permitindo precocemente o desenvolvimento de estudos e pesquisas em todo o mundo."


Depois ocorreu a epidemia de MERS-CoV (síndrome respiratória do Oriente Médio por coronavirus, isolado em 2012). Nesse caso, as pesquisas foram realizadas para o desenvolvimento de vacinas. No entanto, não chegaram a ser aplicadas porque a doença também foi controlada com medidas de vigilância sanitária. A isso se somou a reaparição de outro vírus, o Ebola na África, para o qual houve esforços e financiamento  internacionais para a produção de vacinas, que também não chegaram a ser usadas, pois houve contenção do vírus  apenas com ações de controle a nível comunitário.

Outro fator importante deveu-se à rapidez com que a China detectou o primeiro surto de uma enfermidade aguda respiratória em Wuhan, que ao final dezembro de 2019 foi identificada como causada por um novo coronavirus.  Seu código genético foi distribuído para todos os laboratórios importantes do mundo no dia 10 de janeiro de 2020, permitindo precocemente o desenvolvimento de estudos e pesquisas em todo o mundo.

E por fim a identificação da chave do RNA, a estrutura simples do vírus para a penetração nas células, a proteína S de “spike”, permitiu a quase imediata produção de testes diagnósticos e, o melhor, facilidade para buscar uma vacina específica.

A isso é necessário somar que a ameaça causada por esse vírus levou a altos investimentos, mal coordenados, mas que arrecadaram centenas de bilhões de dólares de fundos públicos e de doadores privados visando o desenvolvimento de vacinas.

Primeira pessoa vacinada no Brasil
1.b) A questão da confiabilidade das vacinas é um pouco mais complexa. Essas vacinas, de modo geral, estão sendo aprovadas face à gravidade da epidemia, fazendo com que órgãos reguladores cedam em algumas de suas exigências, por isso alguns caminhos abreviaram seu tempo de aprovação. Todavia,  toda essa agilidade é para ser aplicada somente na situação de emergência sanitária em que vivemos. O que é bem razoável, mas exige acompanhamento de efeitos adversos mais cuidadosos na chamada fase IV dos estudos clínicos (pós-comercialização).

No entanto, muitos estudos não permitiram convicções mais amplas, por falhas, algumas sérias, de metodologia utilizada na fase III, ou porque essa foi muito curta. Ou ainda porque seus protocolos não cobriram grupos etários importantes, como poucos idosos e nenhuma criança. Apesar disso, várias vacinas estão sendo administradas e exigidas pelas pessoas e por governos para descomprimirem a tensão política, econômica e sanitária, com forte influência da mídia que serve a interesses de grandes companhias , as quais, apesar de terem investido poucos recursos próprios, exigem lucros fantásticos para sua venda na hora em que são mais necessárias - a lei draconiana da oferta e procura. Sem pudor humanitário.

"Portanto, como não foram feitos estudos para que, com a mesma metodologia, pudéssemos comparar as várias vacinas, estamos submetidos à influência das notícias veiculadas pela empresas que as produzem. A cooperação entre elas foi muito limitada." 


Com a emergência, a sociedade fica impossibilitada de escolher melhores vacinas, especialmente em relação a sua reatogenicidade (reação adversa) e a capacidade de neutralizarem as novas variantes,  ainda não muito bem definidas, em relação a sua infectividade e gravidade, bem como a sua suscetibilidade à ação da imunidade celular e humoral (anticorpos que circulam para parte líquida do sangue) provocada pelas vacinas já em uso. 

De fato, quase todas as vacinas utilizadas visam à neutralização da proteína S. Qualquer variante que não altere a mesma não preocupará. O mais relevante é que a modificação nas mesmas poderá prejudicar a proteção ou inviabilizar a sua penetração celular e o vírus desaparecer quase que por encanto. 
No primeiro caso, no qual se inclui a variante de Manaus, em princípio, as vacinas de virus completo tendem ser as que sobreviverão a mutações, mas as demais talvez tenham que alterar seu IFA (princípio ativo) para incorporar novas sequências da proteína S.

Portanto, como não foram feitos estudos para que, com a mesma metodologia, pudéssemos comparar as várias vacinas estamos submetidos à influência das notícias veiculadas pelas empresas que as produzem. A cooperação entre elas foi muito limitada. Prevaleceu assim, a concorrência, competição, especialmente no mundo ocidental. Isso é uma falha monumental da atividade que cabia à OMS.


RESP-AL: P2 - Quais os tipos de vacina à
                                                                         disposição dos vários países?

EDUARDO COSTA: No Quadro I que anexo, estão listadas as vacinas disponíveis. Mas a pergunta admite uma nuance sobre o que é ter ‘à disposição’. Os fatores que as distribuem no mundo estão muito afastados de suas características intrínsecas: e da saúde como um direito universal. Pelo contrário, são decorrentes da força do mercado farmacêutico e de recursos financeiros de países e populações. Tudo funcionando ao contrário do que, desde a Declaração dos Direitos do Homem da ONU, consideramos minimamente justo. Representa um retrato do neoliberalismo atuando sobre países e instituições internacionais há três décadas.


            QUADRO I -  COMPARAÇÃO ENTRE AS VACINAS PARA A COVID-19*



































 









RESP-AL: P3 - No Brasil, quais as vacinas disponíveis? Qual a mais eficaz e que apresenta menos reação alérgica?

EDUARDO COSTA: Vou dividir em três a resposta a essa questão, pois, apesar de só termos duas disponíveis no momento, há iniciativas para inclusão de outras: 

3.a) No momento temos duas vacinas disponíveis no Brasil. Uma resultante da iniciativa do Instituto Butantan do Estado de São Paulo de efetivar acordo preliminar com a empresa Sinovac da China, anunciada em 11 de junho de 2020 pelo Governador João Dória, e outra da Fiocruz, com o apoio do Governo Federal, anunciada em 26 de junho de 2020 com a empresa AstraZeneca da Inglaterra/Suécia. Houve previsão de transferência tecnológica e produção nacional para as duas. 


Até o momento, temos apenas a vacina do Butantan sendo utilizada, já que a da Fiocruz, por não recebimento dos insumos previstos, está importando a do Serum Institute da Índia, também em acordo com a AstraZeneca, porém a principal diferença é produzir internamente a matéria-prima, desde o início, sem depender do envio da empresa.



O preço da dose da vacina AZ/Fiocruz foi de 3,20 dólares, sendo que os primeiros 30 milhões de doses foram pagos adiantados, ainda em 2020. Essas condições se mantêm para outros 70 milhões de doses previamente contratados (não reembolsáveis por desistência ou fracasso). E as doses que estão sendo importadas, são pagas separadamente a preço superior a cinco dólares por dose ao Serum Institute. 

O que parece claro é que a produção de IFA prevista para ser feita na Bélgica fracassou, e a deslocada para a China não cobre o total contratado no mundo, provocando o atraso no início da produção da Fiocruz. Note-se que esta não têm direito à exportação da vacina da AstraZeneca para os países latino-americanos, enquanto o Butantan/SP  assegurou essa atividade para a Coronavac.

No México, foi formado um consórcio, entre a fundação do empresário mexicano Carlos Slim, a farmacêutica AstraZeneca para produzir o IFA na Argentina – sendo a formulação final e envase feito em laboratório mexicano – para fornecer aos demais países latino-americanos, exceto o Brasil. O preço final ficará entre três e quatro dólares, estando prevista para esse ano a produção de 150 a 250 milhões de doses.

"... Governo Federal, que está também sobre pressão popular e midiática por mais vacinas e mais agilidade no processo, dado o recrudescimento epidêmico e a crise econômica e social que o Brasil atravessa."


3.b) Há no entanto vacinas que agora estão sendo aprovadas para uso no Brasil pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de forma bastante flexível, depois de uma tentativa frustrada de tentar complicar a aprovação da Coronavac do Butantan. Entre elas, estão a Sputnik V desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, da Rússia; a Covaxin da empresa Bharat Biotech da Índia (preço de 15 dólares por dose) e uma pressão grande da Pfizer (17 dólares por dose) e da Johnson para que sejam adquiridas pelo Governo Federal, que está também sobre pressão popular e midiática por mais vacinas e mais agilidade no processo, dado o recrudescimento epidêmico e a crise econômica e social que o Brasil atravessa. Todas elas estão citadas no Quadro anexo.

"Para entender como isso influencia o resultado é preciso ter em mente que a inclusão de sintomas pouquíssimo associados ou não à infecção pelo SARS-CoV-2 não só aumenta a detecção de casos em vacinados, como em não vacinados."


3.c)  Mas, a sua pergunta se referia também à comparação entre essas duas vacinas em uso no Brasil, com respeito a eficácia e reações adversas. É difícil responder baseando-se apenas nos resultados dos ensaios clínicos com essas vacinas. 

Os estudos foram diferentes em muitos aspectos, mas para a eficácia a questão principal é que o “screening” (rastreamento), para os casos que viessem a acontecer nos grupos vacinados e controles, tinha definição muito diferente.  No estudo da AstraZeneca, no Brasil e Reino Unido, as pessoas a serem testadas tinham de apresentar um de quatro sintomas, febre (pelo menos 37,8 C), tosse, fôlego curto e perda de cheiro ou paladar.  No do Butantan, no Brasil, além destes, eram testados também os que apresentassem outros sintomas inclusive vômitos e diarreia. 

Para entender como isso influencia o resultado é preciso ter em mente que a inclusão de sintomas pouquíssimo associados ou não associados à infecção pelo SARS-CoV-2 não só aumenta a detecção de casos em vacinados, como em não vacinados (que sem eles no screnning seriam assintomáticos não detectados), diminuindo a eficácia medida da vacina (como pode-se inferir de como se constrói o risco relativo). 

Adicionalmente o que ocorre é melhor entendido com a visão de que a imunização produz um “shift” (deslocamento) da distribuição de casos segundo sua gravidade (pode-se usar a classificação de casos da OMS). Assim, se ela não é 100% eficaz, inclusive para formas assintomáticas (como em geral as vacinas não são), uma parte dos casos que seriam graves ou moderados tornam-se leves; os leves, levíssimos e os levíssimos, assintomáticos. Deste modo, em consequência, os resultados informados à Anvisa pelo Butantan mostram um gradiente de eficácia interessante: 100% (não significante pelo pequeno número de ocorrências) para casos moderados e graves – que precisam hospitalização. 78% (significante) para casos leves, moderados ou graves, que procuram atenção médica, e 50% para os levíssimos, que não requerem atenção médica. 

Em relação à essa vacina, tem sido apontado que a resposta imunogênica é mais baixa do que a das vacinas baseadas só na proteina S. Isto não surpreende muito em função de que os antígenos usados nos testes procuram detectar os anticorpos apenas para a proteína S e a vantagem das vacinas completas seria a de ampliar o espectro imunogênico.

Já a análise da eficácia da vacina da Astrazeneca é muito mais complicada devido às abusivas mudanças em seu protocolo (em depoimento, voluntária disse que precisou assinar múltiplos consentimentos toda vez que havia uma alteração nos procedimentos) e comparações claramente inadequadas na análise estatística, não previstas nos protocolos.

Se eu fosse contrastar as duas vacinas do modo que me parece mais comparável, a vacina da AstraZeneca teria 62% de eficácia (duas doses completas como era o protocolo correto) para casos leves, moderados e graves e 90% para casos moderados e graves. Não é uma grande diferença, porque estruturalmente ambas têm o mesmo antígeno: a proteína S, ainda que possuam outros componentes diferentes – proteínas do vetor no caso da Astrazeneca e proteínas do próprio coronavírus da Butantan/Sinovac. E nessas está a mais provável diferença na reatogenicidade.

De qualquer modo, é difícil comparar a reatogenicidade das duas frente ao protocolo dos estudos, em especial, na questão dos controles. Esse grupo, chamado controle no ensaio clínico, na vacina do Butantan, foi injetado com uma solução de alúmen, na concentração que é adicionada à vacina para sua composição final. A razão dessa decisão é que o alúmen costuma tornar a vacina mais dolorida ao injetar. Assim, o voluntário não desconfia se tomou o medicamento ou o placebo, isto significa que a situação cega é mantida. No entanto, no caso das AstraZeneca, além de terem acrescentado no protocolo o uso de paracetamol na vacinação, não é fácil entender porque o grupo controle foi vacinado com a anti-meningocócica conjugada A, C, W e Y. 

Essa vacina tem reatogenicidade alta em adultos. Daí não surpreender que os números de reações graves tenham sido quase iguais entre os dois grupos de comparação. E mesmo assim esse estudo foi pausado três vezes em função de reações muito graves, a ponto de o FDA, órgão americano equivalente à Anvisa, não autorizar a continuação do estudo nos Estados Unidos. 

Portanto, não surpreenderá se essa vacina apresentar algumas situações muito graves, como foi noticiado que ocorreu em Manaus. Isso pode estar associado ao estranhamento com sequências proteicas do vetor remanescentes na vacina (adenovírus de chimpanzé). Se assim for, será mais frequente na segunda dose, todavia ainda tolerável coletivamente dada a gravidade da Covid-19. 

Em resumo, parece que a AstraZeneca, talvez confiante na marca Oxford de seu antígeno, cuidou mais dos negócios e aspectos jurídicos do que da qualidade de seus estudos clínicos, sacrificados por querer ganhar tempo e se adiantar a outras. Também se descuidou de seus aspectos industriais, procurando localizar agora justificativas técnicas para aumentar o intervalo entre as doses.

Ambas, no entanto, estão sendo igualmente úteis nesse início de combate à Covid-19 no Brasil. Esperamos em breve poder medir o impacto que estão produzindo. Porém, não me furto a dizer que devíamos ter concentrado o uso da Coronavac nos idosos, porque temos a evidência de que é menos reatogênica e de eficácia melhor demonstrada nos estudos de fase III.

"Ambas, no entanto, estão sendo igualmente úteis nesse início de combate à Covid-19 no Brasil. Esperamos em breve poder medir o impacto que estão produzindo"


RESP-AL: P4 - O Plano Nacional de Imunização contra a Covid-19 não poderia ser mais uniforme, como ter uma única vacina, a que fosse menos reatogênica?

EDUARDO COSTA: A pergunta é interessante. Com a capacidade produtiva do Butantan, da Fiocruz e de alguns laboratórios públicos e privados seria possível concentrar a produção na Coronavac, por exemplo, que tem tecnologia mais simples e historicamente sedimentada, mas os conflitos que o governo federal brasileiro estimula e alimenta tornaram essa possibilidade impossível, inviável. Do mesmo modo, as iniciativas de estudos clínicos no país de várias vacinas candidatas estrangeiras não foram suficientes para que as instituições, com densidade epidemiológica e sanitária brasileira, sugerissem estudos comparativos entre tais vacinas para saber quais as melhores e mais acessíveis. 

"Não estamos mais integrados aos vizinhos do continente nessa  pandemia, principalmente pela onda direitista golpista que assolou a região nesses anos de gestão Trump, e acabou  com a União de Nações Sul- Americanas(Unasul).


RESP-AL: P5 - Os países da América Latina e do Caribe estão atrasados na vacinação da população, com exceção de Cuba, que está produzindo localmente. Além da falta de recursos, quais os problemas que você identifica? Acha viável uma maior cooperação entre eles?

EDUARDO COSTA: A vacina de Cuba, Soberana 2, está iniciando agora sua fase clínica III, ou seja, ainda não iniciou a vacinação geral. A sua capacidade produtiva divulgada seria na ordem de 100 milhões de doses, muito mais do que Cuba precisa. Seria muito oportuno um estudo comparando a Coronavac e a Soberana 2, no Brasil, pois poderia dispensar o uso de controles não vacinados. 

A Argentina e a Venezuela estão apostando também na vacina russa, a SputnikV. E já falamos do arranjo da AstraZeneca com países latino-americanos. Não estamos mais integrados aos vizinhos do continente nessa pandemia, principalmente pela onda direitista e golpista que assolou a região nesses anos de gestão Trump, que acabou com a União de Nações Sul-Americanas (Unasul). 
Além disso, o Brasil, em especial, se tornou um desastre em suas relações na região. Percebo agora uma integração maior periférica em processo, especialmente depois da derrota de Trump e da vitória de forças democráticas na Bolívia e Equador. Na área da saúde, algumas boas iniciativas podem avançar mais. Além da situação econômica e social de nossos países, as derrotas sanitárias nos unem e acabam com arrogâncias e professorialismo. O ambiente deve ficar melhor se quisermos avançar na luta comum dos povos latino-americanos contra o imperialismo econômico e cultural.


RESP-AL: P6 - O Instituto Butantan completou 120 anos em 23 de fevereiro e a Fiocruz completará 121 anos em 25 de maio. O Brasil comprovou que tem expertise, competência e seriedade na área científica. Por que não há o investimento governamental necessário? A sociedade tem percepção disso?

EDUARDO COSTA: Não sou um científico-ufanista brasileiro nos tempos atuais. Ainda que reconheça nossas possibilidades e avanços setoriais. Nosso desenvolvimento científico ficou muito mais dependente depois de 1964. E, a partir de 1990, o país jogou fora sua memória e se preparou para o neoliberalismo, adotando tudo que azeitaria as novas práticas. 

Há 30 anos, o Brasil desindustrializa-se e portanto não há onde inovar para o consumo de massa que precisamos. Vivemos do agronegócio e da atividade extrativa e achamos mais fácil importar quase tudo, porque temos superavit comercial. Estamos desmontando e vendendo em fatias a Petrobrás, demonstração histórica da capacidade científica e tecnológica brasileira. E principalmente nos lixamos para a educação. Somos um dos poucos países do mundo que gastam mais em saúde do que educação, por exemplo. Na pandemia, fechamos as escolas dos pobres e abrimos os shoppings dos ricos.


Entrevista de 28/02/2021.

Revisão para edição de 06/03/2021. 

Eduardo de Azeredo Costa – edu.costa@live.com




segunda-feira, 15 de março de 2021


FORTALECER O SUS – TAREFA NACIONAL*

A propósito da epidemia do COVID-19 no Brasil 


                                                                                                                Eduardo de Azeredo Costa**

            Vai passar? Sim, vai passar. E ninguém tem dúvida de que a humanidade sobreviverá e continuará sua história na Terra. Cremos que deixará legados. Bons e maus. Quais serão, para além de uma tênue memória do episódio, 100 anos depois, como a da pandemia da gripe espanhola de 1918/19?

            A economia agro-exportadora continuou no Brasil, apesar dos episódios nefastos como o de navios não poderem atracar por epidemias à bordo (menos significativos do que à época da epidemia de Febre Amarela no Rio de Janeiro - poucos anos antes). Afinal, o modelo tinha sobrevivido também à Greve Geral de 1917.

            A explosão de alegria no Carnaval seguinte precisou ser lembrada por pesquisa aos periódicos de então. Mas, houve hipótese também de dano mais prolongado do que as milhares de mortes daqueles meses. Suspeita-se que a epidemia de infartos e doença coronariana, das décadas 1940-50, possa ter sido um legado tardio.

            Antes, perdido na rememoração do final de 1918 no Brasil, veio à tona que o quinino foi usado para tratar pacientes, o antimalárico usado à época. Não surpreende, pois, que agora, por analogia, a cloroquina venha à cena.

            Não veio, no entanto, uma ação do Governo na área de saúde que dá frutos até hoje, em que pesem problemas variados ao longo da história das instituições nacionais de saúde.

            A criação do “Serviço de Produção de Medicamentos Officiaes” (SPMO) data de 1o. de maio de 1918, por Decreto Presidencial no. 13.000, que definia que se localizaria no Instituto Oswaldo Cruz; seu objetivo era produzir quinino e outros medicamentos. A epidemia no Brasil aparentemente começou em setembro daquele ano, a ação foi de longo alcance. E o presidente atento à saúde e higiene, que antes nomeara Oswaldo Cruz, e agora depositava a confiança em Carlos Chagas, faleceria vítima da espanhola. Passada a epidemia, o medicamento ainda interessava para o combate à malária, foi construída a pioneira fábrica de quinino na fazenda de Manguinhos, logo atrás do Castelo de Oswaldo Cruz. Farmanguinhos /Fiocruz é sua sucessora.

Em 2008, descortinado esse fato, descerramos uma placa comemorativa no Complexo Tecnológico de Produção de Medicamentos em Jacarepaguá, com a presença de Chefe da Casa Civil Dilma Rousseff e do Ministro José Temporão. Mais tarde ainda entregamos a primeira partida de Efavirenz (crítico para a AIDS), totalmente produzido no Brasil e sob controle direto de Farmanguinhos em ação inovadora. Essa ação estatal, ao contrário de prejudicar iniciativas produtivas farmoquímicas privadas nacionais, iniciou o processo de salvá-las e desencadeou outras ações de governo coerentes.

Paulo Buss, então Presidente da Fiocruz, Dilma Rousseff, Chefe da Casa Civil,
José Temporão, Ministro da Saúde e Eduardo Costa, Diretor de Farmanguinhos
 descerram a placa comemorativa dos 90 anos da criação do Serviço de Produção
 de Medicamentos Oficias em 2008. 

            Talvez, possamos estar errados quanto à opinião de que a criação do SPMO foi o maior benefício para o Brasil trazido pela gripe espanhola há cem anos. Mas 

            E agora? Além de importar equipamentos, como respiradores e produtos, como testes diagnósticos, o que faremos? A produção nacional diz da soberania, mas principalmente de não ficar inermes frente à escassez mundial, deixando de servir ao povo brasileiro. Temos capacidade tecnológica para tanto, mas as armadilhas da tradição exportadora de produtos primários nos fez refém de importações que destruiram nossas indústrias privadas.

E quem trabalhou em laboratórios como o Instituto de Pesquisas Biológicas de Porto Alegre, Instituto Adolfo Lutz, Instituto Oswaldo Cruz, Instituto Evandro Chagas e outros, sabe da capacidade que é atropelada pela importação, mas também pela falta de planejamento na saúde, que depende da definição de programas de grupos técnicos ad hoc, e, antes de nos preparamos para supri-los, deslancha-se programas de compras por importação.

Assim, somos levados a pensar no tipo de legado para o SUS, agora. A defesa da indústria nacional é crítica para os sistemas de saúde, especialmente nos momentos de crise. Enquanto a criação do Serviço Nacional de Saúde inglês alavancou a indústria britânica de medicamentos que, de importadora, passou a exportadora, não criamos as bases para isso na farmoquímica brasileira. Na área de imunobiológicos, liquidamos com nossos produtos pioneiros por falta de inovação e passamos a importar tecnologia das multinacionais.

Esse fato demonstra que o projeto nacional de desenvolvimento é condição necessária para o fortalecimento do SUS. E para ele estabelecer um planejamento do Ministério da Saúde que o respeite e para ele contribua – uma interação necessária.

FORTALECER O SUS é também liberá-lo de riscos do trabalho e do ambiente, através de todo o sistema produtivo e ambiental, bem como do efeito danoso do abandono social da população, da cruel desigualdade social. FORTALECER O SUS é propiciar educação para todo o povo brasileiro para que possa se proteger e cuidar dos seus familiares. Assim o SUS poderia dedicar-se ao que é central na sua missão.

Dito isto, há também de FORTALECER O SUS por dentro ou em si. O que precisa ser o SUS renovado? Um sistema de saúde universal que garanta a prestação de serviços de saúde adequados à população brasileira com equidade.

O SUS, no entanto,  não é o único prestador de serviços de saúde no Brasil. Aliás, como sistema, ele não é um ente, não presta qualquer serviço. As entidades de saúde, públicas e privadas, filantrópicas ou lucrativas é que prestam os serviços. E o SUS os financia. Paralelamente ao SUS, há outros prestadores de saúde privados do sistema de saúde dos planos privados ou autônomos (muito marginalmente) hoje, que não são financiados diretamente pelo SUS, mas sim diretamente por usuários, ainda que recebam indiretamente benefícios do Estado (inclusive como abatimento de imposto de renda dos que ganham mais). Para regulamentar o segmento de prestação de serviços privados de saúde foi criada a Agência Nacional da Saúde Suplementar. Como também foi criada a ANVISA para cuidar dos padrões de qualidade de produtos sanitários.

Das características do SUS, enquanto tal, e não de todo o setor saúde brasileiro, resultam alguns problemas que precisam ser sanados para que seja fortalecido internamente. Vamos focar em apenas dois deles.

A fragmentação dos prestadores por entidades com abordagens e interesses diferentes, reduz a capacidade de planejar nacionalmente e mesmo localmente, resultando daí a má distribuição dos recursos, provocando inequidade no acesso e na qualidade dos serviços. Isso, no caso brasileiro, fica mais sério ainda, dada a urbanização descontrolada na falta de políticas habitacionais, de saneamento, de transportes, educacionais, enfim, econômicas e sociais agravadas durante a ditadura militar e não respondidas a contento nesses 30 anos, pós CF88 e Lei 8080/1990.  Na crise atual agrava-se na distribuição dos leitos de UTI, que seguem padrões mercadológicos.

A outra questão se refere aos recursos humanos para a saúde. Essa mesma característica do SUS, não permitiu a criação nacional de uma carreira de servidores do SUS. Ora, há prestação por entidades públicas de saúde federais, estaduais e municipais e privadas. E mesmo na área pública, inclusive com políticas neo-liberais de precarização de contratos trabalhistas e de legislação de controle fiscal, grande parte dos trabalhadores da saúde são terceirizados ou seja, não têm a característica de estabilidade para o treinamento continuado e o convívio prolongado com as comunidades, que são a melhor característica da atenção primária de qualidade.

Os servidores do front sanitário, particularmente nos hospitais, nessa epidemia, como soe acontecer, são os mais expostos ao risco de adoecer e morrer. Pela natureza da exposição ser íntima, como especialmente com o pessoal de enfermagem e serviços de limpeza, por ser prolongada e submetida a altas cargas virais. 

Nessa pandemia, a sociedade tem manifestado seu reconhecimento pela dedicação e tem valorizado os trabalhadores da saúde, em todo o mundo. Na Espanha criou-se um ritual matinal de aplaudir das janelas os trabalhadores da saúde que vão assumir seus postos. E mais deveriam ser aqui no Brasil, onde suas condições de contrato e trabalho são precários. Não é incomum que um técnico de enfermagem trabalhe em até três hospitais diferentes, no regime de plantão, com contratos diferentes, para poder ganhar o suficiente para manter sua família. Com isso, também são vetores de transmissão da doença para suas famílias e comunidades, e vários mandaram seus filhos para casa de outros parentes nesse momento.
No entanto, isso não acontece só agora, a incidência mais elevada de várias doenças está entre o pessoal da saúde todo o tempo. Um dos exemplos críticos é com a hepatite C.

Por tudo isso, está na hora da Carreira da Saúde. Preferentemente em tempo integral. É tão estratégico quanto a das forças armadas para a segurança nacional. E nos deixa um legado indelével do enfrentamento ao Coronavírus, que vai nos servir por mais 100 anos. Será sempre lembrado que a outorga foi por sua dedicação ética, seu destemor e sua disciplina profissional.
Claro que para isso precisamos fazer do SUS um Serviço Universal da Saúde, o fortalecendo. Planejamento central, que não seja o apenas o orçamentário, mas o estratégico, voltado para a equidade. E preparo de unidades flexíveis de saúde para movimentação tática.
De início criar os SES – Serviços Estaduais de Saúde, públicos, universais a nível estadual. Os serviços municipais deverão ser diretamente coordenados por cada estado.
Outro arranjo poderia ser a criação de um Instituto Nacional de Saúde Pública.

Não propomos, portanto, Mais SUS, ou Defender o SUS, a proposta é a união nacional para FORTALECER O SUS, como Objetivo Nacional permanente, com a criação do Quadro Nacional de Servidores Públicos da Saúde.

* Esse artigo foi redigido em 5 de abril, revisto em 6 de abril, para publicar no dia 7 de abril de  2020, celebrando o dia mundial da saúde. Revisado foi publicado como editorial em: http://www.escs.edu.br/revistaccs/index.php/comunicacaoemcienciasdasaude/article/view/663 
** – Eduardo Costa é médico-sanitarista, PhD em epidemiologia. Atualmente é Assessor de Cooperação Internacional da ENSP/Fiocruz.

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Prezado Leitor: 

Depois de quatro anos sem postar no meu blog, no início da pandemia da COVID-19, decidi vestir minha camisa de sanitarista e epidemiologista e contribuir numa perspectiva mais técnica para o que o sofrimento das pessoas me chamava mais diretamente. Senti como uma obrigação ética profissional.
Escrevi esse artigo em abril do ano passado, o coloquei aqui para edição e resolvi não publicá-lo sem que antes o fosse por uma revista científica. Mas ficou como bala na agulha não disparada.
Depois, com a nova dinâmica de comunicação com as muitas "lives", no estilo que nossa vida se desenvolveu, resolvi atuar mais diretamente nas discussões abertas. Achei também que esse blog não tinha bem o padrão que eu queria imprimir de debate focado na pandemia. 
Já extenuado agora, e vendo a dificuldade de poder contribuir mais diretamente, resolvi consolidar esse trabalho, e me desgastar menos nesse vai e vem midiático. Resolvi iniciar um capítulo novo do blog sem a parte político-partidária*, mas na mesma temática de política e saúde pública, que focará na COVID-19. Espero que funcione como penso. 
Abraços, agora vacinado, a todos, que ainda não o conseguiram graças a muitas trapalhadas, erros e até vigarices nacionais e internacionais, com destaque para o Governo Federal brasileiro nesse dia de hoje que cai o 3o. ministro da saúde.

Saúde!

(* Esse movimento também evita focar na mudança partidária que fiz e que talvez já estava claro, mas que pode ficar para ser discutido mais adiante.)